Dr. Rubem A. Mariano
Psicólogo - CRP 08/14994
Whatsapp (44) 998527943
Introdução
Este relatório
final em Psicologia é resultado do estágio supervisionado para formação de
psicólogo no Centro Universitário de Maringá (2009), hoje, Unicesumar. Durante o curso de Psicologia, foram oferecidas as
seguintes áreas e abordagens: clínica, organizacional, hospitalar, escolar,
jurídica, além das concepções da Psicanálise, da Comportamental Cognitivista,
da Humanista-Existencial (Gestalt-Terapia), da Psicanálise Analítica (Junguiana)
e da Psicologia Sistêmica.
O relatório aborda
o estágio em clínica com a prática psicoterapêutica em Gestalt-Terapia. O caso
escolhido é o de uma mulher (MFV), de 62 anos, solteira, que procurou a Clínica
de Psicologia da instituição porque estava muito angustiada e apresentava comportamentos
de irritabilidade e agressividade, especialmente com sua irmã mais nova,
adotiva e com deficiência intelectual, também atendida pela Clínica. MFV foi
orientada pela estagiária que atendia sua irmã a buscar ajuda. Motivada pela
constante melhora da irmã, decidiu buscar ajuda para si.
A escolha do caso
revela dois aspectos importantes para o estágio nessa abordagem. O primeiro
destaca a importância da relação terapêutica como vínculo necessário para
contribuir no processo de ajustamento criativo, uma vez que a cliente
apresentava interrupções e vivenciava sofrimento psíquico através de
comportamentos repetitivos. O segundo aspecto destaca o desenvolvimento de
mecanismos de evitação característicos e identificáveis no funcionamento da
cliente.
O atendimento
ocorreu na Clínica de Psicologia do Cesumar, onde a cliente se inscreveu para
ser atendida. Foram desenvolvidas ações de triagem, psicodiagnóstico
(diagnóstico, prognóstico e encaminhamentos) e psicoterapia, utilizando as
salas de triagem e de terapia. Os atendimentos ocorreram semanalmente às
segundas-feiras, às 17h30.
Este relatório
compreende 21 sessões realizadas desde a triagem até a conclusão da
psicoterapia, abrangendo o período de 13 de abril a 10 de novembro de 2009. Durante o
processo psicoterápico, houve feriados, recessos, faltas de MFV e suspensão das
aulas devido à gripe A (H1N1).
As supervisões do
caso ocorreram às terças-feiras, das 8h às 11h, na Clínica de Psicologia.
Nesses encontros, o caso era apresentado em forma de relato dialógico, e a
supervisora contribuía no entendimento e auxiliava o aluno na compreensão e
ação diante do caso. Além disso, era obrigatória a organização do prontuário,
especificando as ações administrativas e os conteúdos tratados em cada sessão,
os quais eram vistoriados pela supervisora ao final de cada encontro.
Como foi observado
no primeiro parágrafo, este estágio é desenvolvido seguindo a abordagem da
Gestalt-Terapia. Conforme Serge e Anne Ginger (1995), o nome de Fritz Perls,
psicanalista judeu de origem alemã, é considerado um dos principais
articuladores dessa abordagem em Psicologia, e o contexto do nascimento dessa
nova forma de fazer terapia remonta oficialmente aos idos da década de 1950,
nos Estados Unidos, mais especificamente em 1951, em Nova York. Segundo Perls
(1988), o termo “Gestalt” é uma palavra alemã para a qual não há tradução
equivalente em outras línguas. Dada essa questão, na língua portuguesa o termo
em Psicologia Clínica tem sido utilizado, principalmente, da seguinte maneira:
“Gestalt-terapia”, Psicologia da Gestalt ou “Psicologia da Forma”, sendo esta
última a menos comum.
Por “Gestalt”,
Perls (1988) afirma: “... é uma forma, uma configuração, o modo particular de
organização das partes individuais que entram em sua composição” (p.19). Por
isso, pode-se compreender, nesse sentido, que a ideia básica em Gestalt-Terapia
de natureza humana é de uma relação organizada entre o todo e as partes. Esse
entendimento, ainda segundo Perls (1988), é vivenciado pelo indivíduo e só pode
ser compreendido nessa perspectiva vivencial. Para Serge e Anne Ginger (1995),
“Gestalt” significa dar forma, dar uma estrutura significante; ou melhor, essa
palavra indica uma ação prevista, em curso ou acabada, que implica um processo
de dar forma, uma “formação” (p.13).
É fundamental
ressaltar, logo de início, que essa abordagem psicológica teve um propósito
específico e tem diversas fontes. Segundo Lima (2007), no Dicionário de
Gestalt-Terapia, a Gestalt-Terapia surge como resposta às críticas e
reformulações que Perls desenvolveu em relação à Psicanálise, com ênfase na
chamada teoria da Gestalt de Wertheimer. Já Cardella (2002) observa o seguinte
sobre a diversidade de fontes da Gestalt:
“A Gestalt tem fontes múltiplas. Essa abordagem foi criada a partir de
uma série de influências teóricas e filosóficas, que se constituem num
coerente, mas constante transformação, já que não possui um corpo teórico
pronto, hermético e acabado... As principais influências do pensamento de Perls
foram a Psicanálise, a análise do caráter de Reich, a Fenomenologia, a
Psicologia da Gestalt, a teoria organísmica de Goldstein, a filosofia
existencial e o zen-budismo” (pp. 33-34).
Quem também
concorda com Cardella, de forma geral, são Serge e Anne Ginger (1995). Contudo,
fazem o seguinte destaque: “é difícil precisar a origem e os fundamentos
teóricos devido à diversidade, mais ou menos, de combinação de numerosas
correntes filosóficas e de terapêuticas de diversas fontes: europeias,
americanas e orientais” (p.33).
Serge e Anne
Ginger (1995), por sua vez, destacam o seguinte dessa psicoterapia:
a) Dá ênfase à tomada de conscientização da
experiência atual e reabilita a percepção emocional e corporal;
b) Visão unificadora do ser humano, incluindo as
dimensões sensoriais, afetivas, intelectuais, sociais e espirituais;
c) Favorece um contato autêntico com os outros e
consigo mesmo, um ajustamento criador do organismo ao meio, assim como a
consciência dos mecanismos de evitação, processos de bloqueio ou de interrupção
do ciclo normal de satisfação de nossas necessidades;
d) Não apenas explica, mas experimenta as pistas para
soluções novas diante do sofrimento psíquico. Por isso, visa compreender e
aprender, mas, sobretudo, experimentar para alargar ao máximo o campo vivido e
a liberdade de escolha;
e) A responsabilidade é própria de cada ser humano. “O
importante não é o que fizeram de mim, mas o que eu faço do que fizeram de
mim”, à luz do pensamento sartreano;
f) Trabalha tanto individualmente quanto em grupo, com
experimentos e técnicas para o desenvolvimento da awareness.
Do ponto de vista
de uma sistematização filosófica, a abordagem da Gestalt-Terapia tem influência
do Humanismo, do Existencialismo e da Fenomenologia. A seguir, algumas
elaborações de Ribeiro (1985) sobre esses pressupostos filosóficos na
constituição dessa abordagem; deve-se compreendê-las de forma relacional e não
de maneira estanque:
a) Sobre o Humanismo: a Gestalt-Terapia se coloca ao
lado das psicologias humanistas, promovendo a ideia do homem como centro, como
valor positivo, capaz de se autogerir e regular;
b) Sobre o Existencialismo: a Gestalt-Terapia se
fundamenta numa visão específica da existência. Ela faz um apelo constante à
liberdade humana, à individualidade, à responsabilidade pessoal e coerente;
c) Sobre a Fenomenologia: a Gestalt-Terapia utiliza-se
da Fenomenologia como um método de compreensão da realidade, auxiliando a ler,
descrever e interpretar... Aquilo que aparece como aquilo que é aparente na
coisa ou a aparência da coisa.
Observa-se, portanto, que os princípios básicos dessa
abordagem ressaltam, conforme Corey (1983):
“... um tipo de terapia existencial baseada na premissa de que os
indivíduos precisam encontrar seu próprio caminho na vida e aceitar a
responsabilidade por si mesmos... Esta abordagem, por trabalhar sobre o
princípio da consciência, faz convergir a atenção para o ‘o que’ e ‘o como’ do
comportamento e da experiência no aqui-agora, integrando as partes fragmentadas
e desconhecidas da personalidade” (p.95).
Nesse sentido, a
Gestalt-Terapia elabora uma compreensão em que doença e saúde estão
relacionadas à conscientização que a pessoa tem de seus sentimentos. Segundo
Corey (1983), isso passa pelas tarefas interrompidas, que, por não serem
totalmente experimentadas em estado de consciência, sobrevivem num segundo
plano e são transferidas para a vida atual de um modo que interfere no contato
efetivo da própria pessoa consigo mesma e com os outros (p. 98). Portanto,
conforme PHG (1997), saúde e doença “é uma questão das identificações e
alienações do self: se um homem se identifica com seu self em formação, não
inibe seu próprio excitamento criativo e sua busca da solução vindoura; e,
inversamente, se ele aliena o que não é organicamente seu” (p.49).
Sendo assim,
pode-se compreender que a teoria do self (id, ego e personalidade), segundo os
primeiros elaboradores da Gestalt PHG (1997), é um sistema de contatos
presentes num determinado campo. Por exemplo, quando uma pessoa não faz
contato, desenvolvem-se sentimentos e comportamentos inadequados, não
saudáveis, que geram sofrimentos psíquicos. Portanto, fazer contato é, em
geral, crescimento do organismo (humano) num dado campo/ambiente. Nesse
sentido, cabe ao self o funcionamento de ajustamento criativo.
Segundo Távora
(2007), a personalidade é uma “estrutura possível”, um “aspecto do self” ou um
dos três sistemas principais do self aliados ao “id” e “ego”. Pode-se
depreender de PHG (1997) que esses três sistemas estão relacionados ao
ajustamento criativo e que a personalidade “é a figura criadora na qual o self
se transforma e assimila ao organismo, unindo-a com os resultados de um
crescimento anterior”. Já Serge e Anne Ginger (1995) entendem que a
personalidade “é a representação que o sujeito faz de si mesmo, sua autoimagem,
que lhe permite se reconhecer como responsável pelo que sente ou pelo que faz”
(p.127).
Ao psicoterapeuta
compete, através do diálogo Eu-Tu, em face de todas as condições próprias e
inerentes à relação terapêutica, possibilitar (através também de experimentos e
técnicas estritamente contextualizadas no processo terapêutico) ao cliente os
meios pelos quais ele próprio vivencie uma melhor configuração e assim
desenvolva ajustamentos criativos saudáveis diante das mais diversas situações,
onde a conscientização, awareness, é uma condição existencial necessária e
imprescindível para uma vida que busca o bem-estar, a saúde.
Observam Serge e
Anne Ginger (1995) que o uso de técnicas no sentido de experimentos em
Gestalt-Terapia pode ser indicado para trabalhos em grupo, numa relação dual
ou, ainda, no contexto organizacional. Importante ressaltar que a aplicação das
técnicas não pode estar dissociada da relação mesma do significado e
entendimento do campo onde será aplicada a técnica. Em outras palavras, cabe ao
psicoterapeuta, através de sua sensibilidade e criatividade, compreender e
aplicar uma técnica ao sabor do melhor momento. Serge e Anne Ginger (1995)
apresentam uma lista de algumas técnicas. É importantíssimo reiterar que as
técnicas estão para a Gestalt como um instrumento que possibilita e desenvolve
contato diante dos mecanismos de defesa ou de evitação, auxiliando no processo
de ajustamento criativo saudável. Aqui estão algumas: exercício de awareness,
cadeira vazia, dramatização, aplicação, interação direta, trabalho com sonho,
expressão metafórica, dentre outras.
Posto isso,
inicialmente, o presente relatório está dividido nas seguintes partes: 1) O
caso MFV e a identificação da cliente com dados pessoais e genetograma e sua
devida descrição; 2) Descrição da queixa inicial e latente; 3) História de
Vida; 4) Processo psicodiagnóstico com a descrição e análise fundamentada, bem
como a hipótese compreensiva; 5) Processo Psicoterapêutico com descrição e
análise fundamentada; a avaliação da evolução do tratamento e apresentação dos
resultados; prognóstico e encaminhamentos; 6) Considerações Finais. Por fim, as
referências utilizadas para fundamentar teoricamente este relato.
1. O caso MFV
Dados Pessoais
Nome: MFV
Idade: 62 anos
Escolaridade: Ensino Fundamental
Sexo: Feminino
Pai: A.F.M. (falecido)
Mãe: J.R.M. (falecida)
2. Genetograma e Descrição
MFV (identificada por um círculo dentro do outro) é a segunda filha do casal, ambos já falecidos. Ela faz parte de uma família de nove irmãos, sendo três homens e cinco mulheres vivos. Dois irmãos são falecidos: uma irmã, a primeira filha (suicídio), e um irmão, o quinto filho (atropelamento). Tem, ainda, duas irmãs adotivas, sendo uma deficiente intelectual, a mais nova entre elas. MFV mora com duas irmãs, a segunda adotiva e a última filha biológica do casal. Tem um relacionamento muito estreito com o seu irmão mais velho dos homens.
2. Descrição da Queixa
2.1. Queixa Inicial
MFV chegou se
queixando que sua vida é muito sofrida. Sente-se angustiada, muito irritada e é
agressiva com tudo e com todos. A gota d’água, segundo ela, foi quando soube do
envolvimento amoroso da sobrinha com um de seus cunhados: “isso é um absurdo”,
afirmava por diversas vezes durante as primeiras sessões. MFV dizia que essa
sobrinha havia acabado com a família dela: “hoje o que é minha família? Nada...
Tudo por culpa dessa... Que raiva! Que vontade de agarrar o pescoço dela e
bater, mas bater muito até matá-la.” Dizia, ainda, que esse sofrimento era tal
que sentia no próprio corpo, quando do nada a carne começava a pular dos ossos;
sentia flacidez e tremores constantemente.
2.2 Motivo Latente
MFV não aceitava
de maneira nenhuma o relacionamento da sobrinha com o cunhado: “por que ela
teve que escolher logo ele; por que ela não foi procurar outro homem por aí,
têm tantos, logo gente da minha família. Ela acabou com a minha família”.
Nota-se que MFV valoriza significativamente a família. MFV desenvolveu uma
relação muito forte com sua família a tal ponto de não se cuidar pessoalmente
para cuidar da sua família, a qual, segundo ela, foi destruída pela sua
sobrinha. Contudo, tal situação de angústia e dor pode estar relacionada ao
fato de sua família estar sendo literalmente destruída (as mortes dos irmãos,
pais e a doença do irmão querido).
3. História de Vida
MFV é de família
pobre, é a segunda filha, nasceu de parto normal. Sempre teve uma vida
tumultuada. Lembra da infância, aos 3 anos de idade, quando o pai queria fugir
com uma mulher. Isso marcou muito a vida de MFV, que justifica também por isso
nunca ter se casado. MFV observa que nunca gostou de ser criança. Não tem boas
lembranças.
Na adolescência,
tinha medo do pai e de suas bravuras: “Era bravo demais”. MFV diz que só
brincava quando ele saía de casa: “Nunca brincava com ele em casa”, observa.
Gostava de dançar e passear, o que fazia com um dos irmãos, que a levava sempre
aos bailes. Lembra com saudade e estima desse tempo. No final da adolescência,
esse irmão de MFV se casou. Ela diz que chorou muito. Ficou muito triste.
Na juventude, por
causa do casamento desse irmão, parou de sair e ficou toda a sua juventude em
casa, cuidando da família, sem sair. MFV observa que teve um namorado aos 19
anos e nunca mais se relacionou com ninguém.
Sempre trabalhou
como doméstica em casa. Quando tinha mais de 50 anos, foi morar na Espanha com
a finalidade de ajudar a família a reformar a casa onde mora atualmente. Ali,
trabalhou como doméstica e babá durante três anos, quando retornou ao Brasil
devido ao falecimento dos pais e de uma de suas irmãs.
Atualmente, mora
junto com a irmã adotiva mais nova e outra irmã que tem um salão de beleza. Ela
fica responsável pelo serviço da casa e pela irmã. Não trabalha fora hoje, mas
diz que tem muita vontade de ganhar seu próprio dinheiro: “Pois as pessoas respeitam
mais quando a gente tem dinheiro, quando a gente não tem, elas não respeitam a
gente, não é?”, observou certa vez.
Segundo MFV, o que
mais lhe indigna é que sua família acabou por causa dessa mulher (sua sobrinha)
e agora não tem mais aqueles momentos gostosos e maravilhosos da adolescência,
quando todos se reuniam para passar juntos as festas de Natal; ela lembra com
muita saudade e alegria.
MFV teve uma vida
muito conflituosa com o pai, marcada por sentimentos de ódio e raiva na
infância, pois o considerava um monstro. Segundo ela, tinha muito medo do pai
até que um dia, na juventude, motivada pelo seu irmão, com quem nutre um
relacionamento muito estreito e que é muito querido por ela, enfrentaram-no e
ela pôde dizer o que pensava dele. Segundo ela, seu pai fazia sofrer muito sua
mãe e ela não entendia como a mãe aguentava todo aquele sofrimento. Da mãe
tinha profundo respeito e consideração: “Aquilo que é mulher”. Seu pai, segundo
MFV, tinha comportamentos estranhos, como tentar seduzir suas irmãs. Ela afirma
que o que mais a indignou foi a tentativa dele de seduzir sua irmã mais nova, a
adotiva e deficiente: “Que absurdo!”, exclamava. MFV afirmava categoricamente
que era por tudo isso que nunca veio a se casar: “Eu não quero sofrer igual à
minha mãe”, sempre concluía.
MFV tem uma
história de perdas em sua família: primeiro morreu o irmão mais novo dos
homens, há 19 anos; durante sua viagem para a Espanha, em 2004, onde permaneceu
por três anos, perdeu sua irmã mais velha que se suicidou e os pais que
faleceram. Mais recentemente, ficou sabendo que o irmão mais velho dos homens,
a quem ela tanto considera e com quem tem um relacionamento estreito, que para
ela é o esteio da família, está com câncer. Interessante observar que na
primeira sessão, do dia 13/04, MFV relatou todas essas perdas e o episódio
amoroso da sobrinha com o cunhado. Assim se expressou:
“Eu tenho vontade
de matá-la” (sobrinha). Ela não poderia ter feito isso. Ela acabou com a nossa
família. No final do ano, estávamos acostumados a receber uma multidão de
gente. Nesse ano não veio ninguém. Foi o pior Natal da minha vida. Ela destruiu
a minha família. E olha que foi a gente que a acolheu. Minha irmã chegou a
cuidar dela. E olha o que ela fez, retribuiu. Eu não quero saber dela nem do
filho que ela teve com meu cunhado. É uma tristeza só. Que dor. Que sofrimento
eu estou passando. Minha irmã, após a separação, ficou deprimida até hoje.
“Meu sentimento é
que a minha família está destruída. Ela é culpada por tudo isso. Não quero ver
ela nunca mais, nem o filho dela. Para mim, essa criança é consequência dessa
união errada. Minha vida é uma tristeza só.
“Meu irmão, de 58
anos, mais novo do que eu. Ele é o esteio da nossa família. Sabe aquele em que
a gente se apoia e busca refúgio? Ele é assim. Ele descobriu que está com
câncer (fica emocionada e chora). Agora não quer saber de tratar. Ele é
separado. Ficou bravo quando soube. Rasgou o papel do médico. Tem medo de
morrer.
“Me sinto totalmente impotente. Me sinto uma inútil.
Minha família está totalmente destruída. Primeiro minha irmã se suicida, meus
pais morrem, agora fico sabendo do câncer do meu irmão. (fica emocionada). É
duro, mas o que é pior do que a morte... é a separação. E ela foi culpada pela
destruição da minha família. A morte chega um dia para todos, mas a separação
da família a gente não pode admitir. Só vejo destruição. Me sinto perdida. Tudo
por causa de uma pessoa, por causa dela (sobrinha).
“Minha mãe foi maravilhosa, mas meu pai era
mulherengo. Quem sabe foi por isso que eu nunca casei. Minha mãe ensinou a
gente a gostar da família. Sou apegada demais à minha família, o que dói mais
hoje é o câncer do meu irmão (chora).”
4. Processo Psicodiagnóstico
4.1. Descrição e Análise Fundamentada
Em
Gestalt-Terapia, fazer psicodiagnóstico não é um ato estanque ou explicativo,
mas sim contínuo (processo), descritivo e interventivo. Segundo Pimentel
(2003), o modo diagnóstico fenomenológico e da Gestalt-Terapia difere dos
modelos tradicionais explicativos pelo modelo compreensivo. Neste modelo,
valoriza-se simultaneamente a ação compreensiva e interventiva desde o início
do contato com o cliente, uma vez que, na perspectiva humanista-existencial, há
uma relação dialógica, Eu-Tu, um encontro entre dois seres humanos, cliente e
psicólogo, um todo e não partes distintas e dissociadas. É nesse sentido que
não se entende o psicodiagnóstico como uma etapa distinta do processo
psicoterapêutico, onde deve haver procedimentos específicos e restritivos a
este momento. Nesse sentido, pode-se afirmar, à luz das elaborações de Pinto
(2009), que o psicodiagnóstico deve ser entendido como pensamento diagnóstico
processual, pois ele nunca está pronto, mas sempre em elaboração, pois durante
a relação terapêutica deve haver sempre uma calibragem constante para a
atualização do funcionamento do cliente.
Contudo, em
Gestalt-Terapia, as primeiras sessões, como todo encontro, devem possibilitar
conhecimento, no caso específico, sobre a queixa trazida pelo cliente. Essas
sessões, como já observamos na fundamentação teórica na introdução deste
relatório final, devem ser um ato contínuo onde os procedimentos metodológicos
da fenomenologia e da Psicologia dialógica atuam observando, descrevendo,
intervindo e contextualizando através, principalmente, da redução
fenomenológica, para se estabelecer assim uma organização e, consequentemente,
uma compreensão apropriada da queixa. É fundamental que esse procedimento seja
interativo entre cliente e psicólogo, seguindo o modelo dialógico de Eu-Tu de
Buber (1979).
O objetivo,
portanto, do ponto de vista do psicoterapeuta é buscar informações, contatar,
dialogar, empatizar e facilitar ao cliente que possa trazer para a relação
terapêutica não apenas a sua queixa, como se essa existisse por si mesma,
isolada, mas fundamentalmente a sua forma de funcionar, de ver o mundo, de uma
consciência tomada por um contexto próprio, de sua forma, por fim, de
estar-no-mundo (Pimentel, 2003).
Melnick e Nevis,
citados por Pinto (2009), propõem cinco razões para se fazer um diagnóstico em
Gestalt-Terapia, as quais apresentam aqui em forma de imagem:
a) Como uma bússola para conhecer e orientar o
caminho;
b) Como uma conversa entre cliente e psicólogo, sem
pressa e ansiedade, que revela a figura, a queixa;
c) Como uma atividade interdisciplinar entre
Gestalt-Terapia com outros sistemas de diagnósticos para melhor compreensão,
por exemplo, da queixa;
d) Como uma relação que se expressa no presente
considerando passado e futuro, sem subestimá-los ou superestimá-los;
e) Como uma ponte para criação de vínculos com outros
colegas de outras abordagens.
Neste caso, foram
realizados os procedimentos administrativos de triagem e psicodiagnóstico
através de entrevistas, bem como experimentos sob a ótica da Fenomenologia e da
Psicologia dialógica como forma de compreender a queixa da cliente.
Inicialmente,
procedeu-se o acolhimento através de uma atitude empática na relação
terapêutica. Tal atitude possibilitou à cliente expressar, durante as duas
primeiras sessões, sua angústia e dor e, assim, notou-se uma redução da
ansiedade. Em continuidade, na terceira sessão, puderam ser feitas as perguntas
do questionário de triagem e o fechamento burocrático dos compromissos da
cliente e do estagiário.
No desenvolvimento
do psicodiagnóstico, foram empregados procedimentos próprios da concepção
Humanista rogeriana e buberiana, onde foi valorizado o diálogo como fator
imprescindível para a compreensão da dinâmica psíquica da cliente.
As entrevistas
foram fundamentadas na metodologia fenomenológica de redução com o objetivo de
aprofundar, precisar e calibrar a queixa da cliente. Como bem observa Pinto
(2009) ao tratar, em seu livro “Psicoterapia de Curta Duração na Abordagem
Gestáltica”, sobre a Psicologia Fenomenológica: “O importante no diagnóstico é
uma atitude que possibilite o aparecimento do fenômeno em sua originalidade.
Isso implica que, no correr da situação terapêutica, o imediato não seja
interpretado à luz de referências anteriores, mas à luz que busca o sentido da
experiência para o cliente” (p.103).
Nessa perspectiva,
também foi utilizado um experimento denominado “lista das pessoas mais
importantes”. A cliente tinha que escrever numa folha de sulfite o nome das
pessoas mais importantes para ela. Esse experimento foi muito oportuno, pois,
aliando a redução fenomenológica e o diálogo, ao longo das sessões, fez a
cliente estar aware de seu funcionamento. No que diz respeito ao diálogo para
abordagem, Pinto (2009) observa: “A premissa básica que sustenta a importância
da congruência, do acolhimento e da inclusão para a relação terapêutica é a de
que a boa psicoterapia se dá por meio da alteridade” (p.149). Nesse sentido,
também o uso do diálogo está na perspectiva teórica de Martin Buber acerca da
relação Eu-Tu e Eu-Isso. Conforme Pinto (2009), “É com fundamento em Buber que
podemos afirmar que a Gestalt-Terapia é uma terapia dialógica, ou seja, para
ocorrer a psicoterapia, é preciso que ocorra um diálogo entre terapeuta e
cliente” (p.149); assim se pode perceber do relato da sessão a seguir:
_E.: A senhora vai escrever nessa folha de sulfite o
nome de pessoas importantes para a senhora?_
_C.: Bem... a primeira é a Z. Ela é muito importante
para mim. O R., apesar de tudo que ele fez, ele é importante para mim. Não sei
se vou perdoá-lo, mas ele é muito gente boa. Gosto demais dele e da E._
_E.: Depois que ocorreu aquela situação envolvendo ele
e a sua sobrinha, a senhora nunca mais conversou com ele?_
_C.: Nunca mais. Nunca mais. Outra pessoa muito
especial é o E. Esse meu irmão é demais. Ele é o primeiro. Tem a C., M., J., e
também a Ja., essa, apesar de tudo, eu gosto muito dela. Ela gosta de mulher.
Sabe como é, a gente fica muito triste com tudo isso. Fica mesmo. Tenho ainda
meus sobrinhos. É, acho que é isso._
_E.: A senhora não está esquecendo ninguém?_
_C.: Esses que eu coloquei são mais daqui da cidade e
da região. É verdade que tem mais gente, mas esses são os mais próximos._
_E.: Então não esqueceu ninguém?_
_C.: Não._
_E.: E onde está o nome da C.?_
_C.: Essa não precisa. Não tem valor nenhum._
_E.: É mesmo. Por quê? O que você sente?_
_C.: Ah... Eu não fiz nada que tenha valor. Eles nem
se lembram de mim. Sou eu quem se lembra deles. Eu não fiz nada de valor,
sabe?_
_E.: A senhora listou cada nome falando do valor que
cada um tem para a senhora. A senhora não tem valor para eles?_
_C.: Acho que não._
_E.: A senhora não fez uma viagem e foi para a Espanha
para construir e reformar a sua casa?_
_C.: Sim. Mas eles não se lembram disso. É isso que eu
acho._
_E.: É, C. Veja como as coisas estão muito misturadas.
A senhora se vê misturada e não consegue ver o seu valor._
_C.: É, quem sabe eu deveria tomar outro rumo. Mas eu,
como falei pra você, fui criada daquela maneira com o meu pai e fiz essa opção.
Entreguei-me e vivi por eles..._
_(C. começa a falar do relacionamento dela com a
família e se distancia do foco principal da conversa, que é ela. Com isso, a
sessão chega ao seu final)_
_E.: C., como é difícil, ah... ah..._
_C.: Verdade._
_E.: Quero que você, durante a semana, liste para mim
os seus sonhos, o que você já teve e o que tem, para a gente conversar, OK.
Infelizmente a nossa hora chegou._
_C.: É... meus sonhos (suspira, como se cansada...)
não sei se os tenho._
Como se pode também notar pelo relato acima, houve um procedimento de confrontação através do diálogo que se intensificou nas próximas sessões. Esse procedimento de confronto possibilita desencadear ansiedade (uma técnica própria da psicoterapia de curta duração (Pinto, 2009)) e faz a cliente refletir. No caso, o objetivo era possibilitar a MFV separar o que é dela e o que é do outro.
Nesse sentido,
pode-se ainda reiterar que, como ela nunca teve uma vida independente, mas
sempre desenvolveu um funcionamento criativo de dependência onde prevaleceram
relações confluentes, MFV desenvolveu um ajustamento criativo não saudável com
o meio onde se encontra. Assim, observa-se que MFV desenvolveu mecanismos de
defesa ou evitação, em especial o de confluência, onde assinala relações sem
precisar os devidos limites de contato, ou seja, até onde vai sua vida pessoal
e até onde começa a vida de sua família e vice-versa.
Por fim, no que
diz respeito ao experimento utilizado, possibilitou a MFV fazer um exercício de
reflexão e autorreflexão, pois ao listar o nome das pessoas, “pensava em voz
alta” e revelava assim que estava presente naquele nome. Isso possibilitou
ainda se deparar e se surpreender, diga-se de passagem, com seus pensamentos e
comportamentos, onde nessa lista não constava o seu nome. Isso lhe chamou a
atenção e possibilitou abrir um diálogo mais apropriado entre ela e o
estagiário.
4.2. Hipótese Compreensiva
A angústia, a
irritabilidade e a agressividade que têm incomodado MFV são entendidas por ela
como sendo culpa exclusiva de uma sobrinha que se envolveu amorosamente com um
de seus cunhados. Esses são sentimentos típicos, neste caso, de um ajustamento
criativo não saudável, onde têm funcionado através dos mecanismos de evitação,
dentre os quais se destacam a confluência, a proflexão (retroflexão e projeção)
e a deflexão.
Aliado a esse
pressuposto conforme a Gestalt, pode-se notar que MFV, segundo o DSM-IV
(http://virtualpsy.locaweb.com.br), tem uma personalidade característica da
tipologia esquizotípica: “de um padrão invasivo de déficits sociais e
interpessoais, marcado por agudo desconforto e reduzida capacidade para
relacionamentos íntimos, além de distorções cognitivas ou perceptivas e
comportamento excêntrico”. Nas entrevistas iniciais, MFV faz questão de
ressaltar que sempre fala tudo aquilo que sente para as pessoas que a machucam:
“Boto tudo para fora, não quero nem saber”, ressaltou certa vez.
A presente
hipótese compreensiva pode ser assim articulada. Os sentimentos que fazem MFV
sofrer psiquicamente são sentimentos adquiridos por um comportamento defensivo,
ajustamento criativo, contra as ameaças do meio. Pode-se conjecturar que essas
ameaças tenham relação com o seu pai, o qual é entendido por MFV como sendo
“monstro”, “muito bravo” e “mulherengo”; ela afirma ter tido muito medo dele na
infância. Contudo, MFV desenvolveu também sentimentos ternos por outros membros
da família, como a mãe e, principalmente, o irmão mais velho dos homens. Ela
desenvolveu com esse irmão um relacionamento muito estreito, ao longo de sua
infância, adolescência e juventude, a ponto de identificá-lo como sendo o
esteio da família: “Meu irmão, de 58 anos, mais novo do que eu. Ele é o esteio
da nossa família. Sabe aquele que a gente se apoia e busca refúgio. Ele é
assim...” e “Outra pessoa muito especial (para mim) é o E. Esse meu irmão é
demais. Ele é o primeiro.”
Tomando a história
de vida de MFV através dessas declarações em destaque, observa-se que ela
desenvolveu mecanismos de evitação não saudáveis para sua existência. O
primeiro que se nota acentuadamente é o de confluência. MFV demonstra estar
desenvolvendo um funcionamento confluente crônico (Serge e Anne Ginger, 1995),
pois não consegue precisar as fronteiras de contato entre ela e sua família.
Apesar de MFV mostrar-se uma pessoa que “fala tudo que vem à cabeça”, não
consegue ter uma vida própria (MFV só teve um único relacionamento amoroso que
terminou quando o rapaz lhe pediu em casamento).
Outro mecanismo de
evitação presente no funcionamento de MFV é a proflexão. Ela se queixa do meio
pela destruição de sua família (sobrinha e dos familiares que acham normal o
relacionamento da sobrinha com o ex-cunhado), não admite contato ou envolvimento
afetivo íntimo (sempre fez a opção de não se casar para não sofrer como a sua
mãe, afirma ela), sendo assim desqualifica aqueles que não agem conforme ela
espera que o façam. Segundo Serge e Anne Ginger (1995), o mecanismo de evitação
da proflexão “seria uma combinação de projeção e retroflexão: fazer ao outro o
que gostaríamos que o outro nos fizesse” (p.139). Como foi anotado nos relatos
acima, ela espera que seus familiares tenham a mesma consideração que ela tem
por eles; contudo, como ela não tem claros para si os seus limites, por estar
em estado de confluência, também projeta os seus conteúdos neuróticos no meio.
Na questão da projeção, conforme Serge e Anne Ginger (1995), “é a tendência a
atribuir ao meio a responsabilidade por aquilo que tem origem no self” (p.135)
ou, ainda, se tomarmos a classificação do DSM-IV
(http://virtualpsy.locaweb.com.br), observa-se que os indivíduos de
personalidade esquizotípica: “... muitas vezes têm ideias de referência (isto
é, interpretações incorretas de incidentes casuais e acontecimentos externos
como se tivessem um significado particular e incomum, especificamente destinado
a eles).”
Possivelmente, MFV
fez do episódio de envolvimento da sobrinha com seu cunhado uma projeção,
diante das ameaças presentes que, ao longo dos tempos, têm assolado a sua
família. As constantes e sucessivas perdas têm causado muito sofrimento, pois
ela não desenvolveu um ajustamento criativo de retirada (Ribeiro, 2007), mas
sim tem estabelecido a confluência.
Diante disso, a
presente hipótese compreensiva assinala a necessidade de terapia para MFV para
possibilitar à cliente condições de um ajustamento criativo saudável. A terapia
indicada deve focar, em especial, no desenvolvimento de sentimentos que advenham
da retirada em resposta ao mecanismo de confluência, para que MFV possa
precisar e distinguir os seus sentimentos e os sentimentos dos outros, no caso,
de sua família. Segundo Couto (2004), “A retirada é o mecanismo pelo qual o
indivíduo é capaz de diferenciar-se e sentir-se singular, saindo quando
necessário, vendo-se como diferente do outro” (p. 3).
Por fim, MFV
apresenta o distúrbio de contato deflexivo. Nota-se que ela desenvolve
comportamentos de estilo histérico (vontade de esganar e enforcar a sobrinha),
com afetividade impulsiva (diz que não consegue se controlar e não se
responsabiliza pelo que pode fazer com essa sobrinha) e tem sentimentos de
insegurança (medo de ficar só). Faz-se necessário trabalhar sentimentos que a
levem a se fazer presente; fundamentalmente estar aware de sua vida e
existência.
5. Processo Psicoterapêutico
5.1. Descrição e Análise Fundamentada
Conforme foi
identificado no psicodiagnóstico, MFV se encontrava angustiada, irritada e
agressiva com tudo e com todos que se relacionavam mais intimamente, porque
havia desenvolvido um ajustamento criativo não saudável, onde estava
funcionando através dos mecanismos de evitação, dentre os quais se destacavam a
confluência, a proflexão (retroflexão e projeção) e a deflexão.
Assim, o processo
psicoterapêutico, fundamentado nas elaborações de Ribeiro (2007), foi
instaurado para possibilitar, no caso da confluência, as condições para MFV
estar ciente “do que é seu e o que é dos outros”, distinguindo a vida pessoal
da vida familiar, que no caso se encontrava “misturada” causando sofrimento
psíquico a ela. No caso da proflexão, que segundo Martín (2007) esse mecanismo
de evitação também comporta os mecanismos de evitação da retroflexão e da
projeção, o objetivo psicoterapêutico era possibilitar a MFV viver suas
relações pessoais de forma interativa, ou seja, “se aproximando das pessoas sem
esperar nada em troca”, “agindo de igual para igual” ou, ainda, “agindo pelo
próprio prazer sem esperar do outro, retribuição”. E, por fim, no caso da
deflexão, devido a não estar claro para MFV as fronteiras de contato provocadas
pelo seu funcionamento confluente, o objetivo psicoterapêutico era
“conscientizá-la”, “torná-la mais atenta ao que ocorre à sua volta”, “dar conta
de si, do seu funcionamento, fazendo com que perceba de maneira mais apropriada
possível o que é seu e o que é do outro”.
Apesar de MFV
demonstrar um forte comportamento confluente com sua família, que a fazia
sofrer de angústia, inicialmente, ela sinalizava uma potencialidade de mudança,
já nas primeiras sessões, assim ela se expressava no diálogo com o estagiário:
_E.: A senhora logo no começo disse que quer dar mais
atenção para a senhora. Isso é uma coisa boa, foi isso mesmo que a senhora me
disse?_
_MFV.: É verdade. Sabe, a gente cuida muito dos
outros, mas esquece da gente. Mas é difícil. Minha mãe foi sempre muito calada.
Eu dizia para ela que eu não ia ser assim. Mas sabe... eu já engoli muita
coisa... Hoje estou diferente... Dou às vezes uns gritos para ver se me alivia,
mas ainda sempre fica alguma coisa._
É importante
considerar que, em Gestalt-Terapia, quando a pessoa não consegue desenvolver
sua existência de forma saudável para o crescimento através de ajustamento
criativo, notam-se a presença de mecanismos de defesa ou de evitação (esses
foram apresentados inicialmente por FHG (1997): confluência, introjeção,
projeção, retroflexão e egotismo), os quais interrompem o funcionamento
organísmico para o crescimento adequado caracterizando assim também uma
dinâmica não saudável. Nessa perspectiva, Aguiar (2005) entende saúde como
possibilidade de fluidez na satisfação contínua das necessidades emergentes, de
acordo com o contexto e o momento, e doença, por sua vez, como a
impossibilidade de fluidez onde se desenvolvem comportamentos rígidos,
repetitivos e aspectos neuróticos.
À luz da teoria do
contato, pode-se elaborar que saúde, em Gestalt-Terapia, é fazer contato
adequado e doença é contato inadequado. Segundo Martín (2008), “o contato é uma
das principais necessidades psicológicas do ser humano. Sem ele, a pessoa se vê
sujeita a desajustes marcantes da personalidade e, em casos extremos, à morte”
(p.55). Portanto, o contato é responsável pela condição própria de como o ser
humano vivencia e se desenvolve ao longo de sua existência. No entendimento de
Ribeiro (2007), contato é:
“O modo como uma pessoa faz contato consigo e com o mundo expressa
igualmente o grau de individuação, maturidade e auto entrega que vive, em dado
momento, porque contato é a expressão experienciada e visível da realidade
interna de si mesmo. Tudo na natureza é contato e sem ele tudo perde sentido,
agoniza e morre” (p.29).
Nesse sentido, o
processo psicoterapêutico tem como objetivo possibilitar ao cliente estar aware
em sua vida; fazer contato é terapeuticamente dar-se conta. Nas palavras de
Martín (2008), “o dar-se conta é a capacidade de todo ser humano de perceber o
que está acontecendo dentro de si mesmo e no mundo que o rodeia. É a capacidade
de compreender e entender aspectos de si mesmo e situações ou qualquer outra
circunstância ou acontecimento que se manifeste em seu mundo” (p.45).
Diante disso,
procedeu-se o trabalho psicoterapêutico administrativamente, utilizando
reduções fenomenológicas, relação dialógica com intervenções terapêuticas como
respostas de continuidade, inquisitiva (exploratória), interruptora, usando
analogias, confronto, autoexpressão, colocação de limites e reflexão de
conteúdo verbal; bem como foram utilizados experimentos como a lista das
pessoas mais importantes; frases questionadoras em forma de um presente para
desencadear ansiedade, e a cadeira vazia para a cliente estar mais aware de
seus sentimentos. Segundo Polster e Polster (2001), compreendem que o
experimento em Gestalt-Terapia é uma tentativa de recuperar a conexão entre o
falar sobre e a ação, de agir contra o beco sem saída do falar sobre, ao trazer
o sistema de ação do indivíduo para dentro do consultório; ou seja, trazer
situações não acabadas de um outro lugar para serem vivenciadas no setting
terapêutico, servindo inicialmente como suporte externo até que o cliente
desenvolva o seu próprio suporte ou autossuporte.
Já com relação aos
conteúdos, foram trabalhados os sentimentos e comportamentos de angústia,
irritabilidade, ódio, solidão, raiva, tristeza, dor, fracasso, potencialidade,
força, desejo, vida, destruição, impotência, frustração, morte, tristeza,
depressão, esperança, certeza, dúvida, confiança, desconfiança, amor, coragem,
firmeza, fragilidade, medos, vulnerabilidade, constância, inconstância,
superação, acreditar, aprender, conhecer, experimentar, vivenciar.
O presente
processo terapêutico, dentro de uma compreensão do ciclo de contato e fatores
de cura, na perspectiva teórica de Ribeiro (1999, 2006 e 2007), teve como
objetivo, portanto, possibilitar a MFV o desenvolvimento de um funcionamento
criativo saudável. Nesse sentido, era necessário trabalhar terapeuticamente um
funcionamento que possibilitasse a fluidez e, consequentemente, o bem-estar
para MFV, a qual havia chegado se queixando de angústia, irritabilidade e raiva
de tudo e de todos com quem convivia.
Assim, procedeu-se
utilizando as intervenções administrativas com o objetivo de desbloquear os
mecanismos de evitação presentes em MFV (confluência, proflexão (retroflexão e
projeção) e deflexão).
A psicoterapia de
linha humanista-existencial-fenomenológica observa a seguinte visão de ser
humano:
“Diferentemente das terapias “dinâmicas”, que se propõem a reconstruir
personalidades, o propósito das terapias humanistas é libertá-las, uma vez que
as características de personalidade potencialmente realizáveis continuam
presentes, ocultadas por atitudes que as impedem ou limitam severamente sua
expressão, isto é, elas não precisam ser reconstruídas, mas desveladas,
conhecidas, apropriadas” (Pinto, 2009).
No caso de MFV,
tal era a sua vivência confluente com sua família que ela própria, ao longo do
processo psicoterapêutico, reconheceu essa relação, denominando-a de “é muito
difícil eu separar”. Assim pode-se notar do diálogo terapêutico:
_E.: Na próxima sessão, vamos retomar aquela questão
de perceber a MFV da família e a MFV enquanto pessoa individual?_
_MFV.: É muito difícil eu separar. Muito mesmo. Está
difícil._
_E.: É... Vamos ter que trabalhar essa questão. A
senhora concorda. Parece que está tudo misturado entre a MFV da família e a MFV
pessoa, não é?_
_MFV.: Sim. É difícil... Não é fácil pra mim. Não sei
como separar isso._
Segundo Ribeiro
(1999), os objetivos do terapeuta são “desenvolver o lado positivo da pessoa, a
colocando frente a frente com o seu poder pessoal e permanecer o mais possível
no presente, para que o cliente experiencie a realidade assim como se apresenta”
(p. 146). Nesse sentido, foi utilizado o experimento da lista dos nomes mais
importantes para MFV. O objetivo era proporcionar a ela estar ciente desse seu
funcionamento confluente e, simultaneamente, possibilitar a retirada necessária
para um funcionamento de fluidez. Nessa oportunidade, MFV sentiu-se
profundamente confrontada, apesar de manifestar-se sabedora dessa relação, ou
seja, ela só dava valor à família e esquecia-se de si. Questionada, através da
redução fenomenológica, sobre sentimentos que tinha de si mesma, manifestou-se
da seguinte maneira:
_E.: MFV, em nossa última conversa uma coisa que
marcou muito, veja se isso procede. Quando eu perguntei onde estava o nome da
C. nessa lista? Você me respondeu que não podia aparecer porque você não tem
nenhum valor. O que seria ter valor para você?_
_MFV.: Ser respeitada. Considerada. Pelo fato de não
ser reconhecida. Sabe... Eu fiz o que fiz e eles não reconheceram._
_E.: Quem?_
_MFV.: A dita cuja, minha sobrinha. Eu acolhi a
família dela e veja o que ela fez comigo._
_E.: Você se sente fracassada na sua vida?_
_MFV.: Sim. Sinto-me muito. É dolorido._
_E.: Qual é o seu valor?_
_MFV.: Nenhum. Não tenho feito nada na minha vida que
marque. Não fiz nada que seja lembrado. Não fiz nada de importante.
MFV sempre se
considerou uma pessoa que não desenvolveu relações próximas, íntimas ou de
confidências; sempre se sentiu sozinha, frágil e fraca, principalmente agora
quando a sua família está “acabada”, chegou a afirmar. Segundo Martín (2008), o
mecanismo de evitação da retroflexão inclui sentimentos de inferioridade, pois
manifesta que as relações consigo mesma estão perturbadas, pois se vendo
inferior também trata as pessoas de forma inferior, querendo encobrir a sua
arrogância.
Em todo o processo
psicoterapêutico, para mais ou para menos, mas sempre constante, MFV considera
a causa de tudo que lhe acontece de ruim a ela e à sua família o fato de sua
sobrinha ter mantido um relacionamento amoroso com seu então cunhado. É isso que
se pode ver em um dos muitos diálogos entre MFV e o estagiário sobre a
sobrinha. O trecho abaixo é uma mostra muito precisa desse comportamento
retroflexivo:
_E.: O que ela fez à sua família? _
_MFV.: Ela acabou. Destruiu minha família totalmente.
Não é mais como naquele tempo. Era gostoso. E ela estragou tudo. O que restava.
Acabou. É duro. É difícil. Quando a gente começa a esquecer, vem ela ou alguém
que faz lembrar tudo que passamos, que raiva que tenho. Que vontade de pegar
essa pessoa e fazer uma coisa que ela nunca esqueça. Sempre digo a quem quiser
falar para ela e que ela também fica sabendo que não é para ela passar em
frente de casa, porque senão eu a pego. Ah, se pego ela, faço o que ela merece.
_
O comportamento
retroflexivo de MFV foi sendo desvelado de tal maneira que ela se queixava de
dores pelo corpo, principalmente no peito e braços, e ela afirmava: “é minha
carne fica pulando, é cada tremor”. Segundo Martín (2008), essa também pode ser
uma forma de retroflexão por estar fazendo mal à saúde e vir a se transformar
em sintomas corporais.
Transcorrido mais
da metade do processo terapêutico, foram utilizados dois experimentos de forma
sequenciada. O primeiro foi entregar a MFV um presente que teria o poder de
mudar para melhor a sua vida, era um pacote com um laço, e dentro desse
presente havia uma frase afirmativa: “Nada muda se eu não mudar” com o objetivo
de possibilitar a MFV estar mais aware de seus comportamentos diante da
terapia, pois vinha de forma reiterada culpando e projetando no meio,
especialmente na sua sobrinha, por tudo que passava de sofrimento na vida.
Nessa oportunidade, MFV foi confrontada a ponto de questionar o estagiário para
que lhe mostrasse o que deveria fazer; contudo, o seu funcionamento neurótico
atuava significativamente durante esse experimento, e ela assim chegou a se
expressar: “só não me peça para falar com ela (sua sobrinha)”. A seguir, um
trecho do relatório do final dessa sessão: “Ao final da sessão, MFV pergunta de
forma objetiva para mim: ‘Você pode me dizer o que tenho de mudar, só não me
peça para falar com essa pessoa, só isso...’. Abriu aquele sorriso para
descontrair a sua agressividade, pegou o presente (frase) e levou consigo para
casa. Tive a sensação que ela ficou com um profundo incômodo.” Nessa sessão,
MFV ficou de pensar sobre o experimento da cadeira vazia, onde iria se deparar
com a sua sobrinha.
Na sessão
seguinte, MFV aceitou fazer o experimento da cadeira vazia, que é uma das
técnicas, segundo Martín (2008), por excelência da terapia gestáltica, em que
consiste dialogar com as diferentes partes que se opõem no indivíduo, e em
colocar em contato aquelas outras que negamos ou rejeitamos. Esse experimento
consiste em colocar uma cadeira vazia ou com um objeto símbolo, por exemplo,
uma almofada, na frente do cliente para que ele dialogue. Conforme ainda Corey
(1983), é uma maneira de levar o cliente a exteriorizar a introjeção. Diante
desse experimento, MFV advertia o estagiário que ele ia ouvir coisas muito
feias. Mas numa perspectiva dialógica de acolhimento e profundo respeito, o
estagiário lhe afirmava que esse era o seu papel, ouvir as pessoas e ajudá-las
terapeuticamente. O objetivo desse experimento foi possibilitar a MFV um
suporte externo momentâneo, uma vez que, no processo terapêutico, reiteradas
vezes seu funcionamento criativo era bloqueado e desenvolvia comportamentos não
saudáveis. O grande objetivo sempre da psicoterapia de abordagem gestáltica é
possibilitar fluidez advinda do próprio cliente, onde ele discerne sentimentos
e comportamentos para a sua vida e existência. Por isso, Polster e Polster
(2001) observam sobre a utilização de experimentos no processo terapêutico:
“O experimento não é nem um ensaio nem um ato póstumo. Se o homem que
gritou com o seu chefe seguisse essa cena como se ela fosse um script para o
futuro, ele seria visivelmente absurdo e auto sabotador. Contudo, como uma
preparação para um contato mais inventivo com seu chefe, o experimento poderia
abri-lo para sua autossustentação e para sua engenhosidade que anteriormente
estava imobilizada” (p. 239).
MFV vivenciou um
encontro com sua sobrinha de forma adequada para o experimento proposto;
conversou durante 25 minutos e manifestou os mais diversos sentimentos, os
quais ela também reconheceu ao ser perguntada como se sentiu. Assim se
expressou: “raiva, ódio, mágoa, desejo de esganar, apertar o pescoço até que
ela ficasse sem ação”.
Após essa sessão
em especial, MFV trazia sempre, apesar de se sentir melhor com a terapia, que
não queria estar no mesmo ambiente onde a sua sobrinha se encontrasse. Falava
de um casamento de uma outra sobrinha que iria ocorrer no final do mês de
outubro e que não iria, pois não se responsabilizava por aquilo que pudesse
acontecer e dizia enfaticamente que era melhor não ir. Contudo, o processo
psicoterapêutico caminhou trabalhando como um dos focos a retirada da
confluência, que se mostrava como uma das questões. Foi solicitado a MFV que
desenvolvesse atividades físicas, o que ela gostou muito, e o que ela afirmou
ao longo das sessões sobre o cuidado que deveria ter consigo: “tenho que me
cuidar, vou voltar a fazer ginástica, cuidar da minha saúde, preciso emagrecer
(MFV foi encaminhada à clínica de nutrição do Cesumar) e ano que vem vou
trabalhar. É isso... e também viajar”.
MFV mostrava-se
mais fortalecida para superar as situações e enfrentá-las. Não poucas vezes
trouxe situações do seu cotidiano que expressavam justamente isso. MFV
sentia-se realizada a ponto de, numa determinada sessão, propor um novo assunto
(uma possível mudança de figura). Sentia medo quando ouvia barulho de moto.
Verificado através da redução fenomenológica, esse sentimento de medo estava
relacionado à sua família e seu cuidado para com ela ou o cuidado com as outras
pessoas. MFV vivenciou sentimentos de morte e tristeza de seu irmão falecido,
vizinha e atropelamento de uma de suas irmãs. Contudo, mais uma vez, o
funcionamento de MFV assinalava o seu envolvimento confluente, pois as sessões
onde ela falava bastante eram sobre o cuidado que ela teve com outras pessoas,
mas não com ela. MFV se dizia preocupada com o irmão que descobriu que tinha
câncer e que ela deveria se preparar para cuidar dele, bem como cuidar de uma
tia muito querida e muito enferma.
O processo
psicoterapêutico de MFV chegou, nesses últimos dias, àquilo que ela havia
elegido como seu grande obstáculo, encontrar-se com sua sobrinha em um mesmo
ambiente, num casamento de uma outra sobrinha. MFV afirmava que não se
responsabilizaria, pois
Pode-se notar com
isso que MFV vivenciou sentimentos e comportamentos polarizados, uma vez que
passou do receio e dúvida antes do encontro para o sentimento de segurança e
confiança, pois viu como sua sobrinha se encontrava: “Ela ficou sozinha, num
canto, sem ninguém”, afirmou. No entendimento de Zinker (in: Cardella, 2002), o
ser humano é um conglomerado de forças polares que se inter-relacionam, mas não
necessariamente no centro; por exemplo, a suavidade pode ser a polaridade da
dureza, mas também da crueldade, ou mesmo da indiferença. Do ponto de vista de
um funcionamento saudável, é a capacidade do indivíduo reconhecer e integrar
suas polaridades.
Deve-se observar,
diante disso, que sentimentos ou comportamentos polarizados fazem parte da
existência humana. Quando não admitidos, demonstram um funcionamento não
saudável em que se nota a rigidez e estereotipia do indivíduo em relação ao seu
autoconceito, não aceitando partes de si mesmo, como a agressividade, tendendo
a projetar essas partes em outros. Contudo, quando admitidos, revelam a boa e
adequada saúde emocional, como se pode depreender da seguinte afirmação de
Perls:
“[...] se quisermos ficar no centro do nosso mundo,
seremos ambidestros - então veremos os dois polos de todo evento. Veremos que a
luz não pode existir sem a ano-luz. A partir do momento em que existe
igualdade, não se pode mais perceber. Se sempre existisse luz, vocês não
experienciariam mais a luz. Deve haver um ritmo de luz e escuridão” (PERLS,
1977, p. 35).
Quem corrobora com
o entendimento das polaridades na atualidade é Zinker (in: Cardella, 2002), ao
afirmar:
“Teoricamente, a pessoa saudável é um círculo completo, possuindo
milhares de polaridades integradas e inter-relacionadas [...] é aware da
maioria das polaridades, incluindo aqueles sentimentos e pensamentos não
permissíveis para a sociedade, e é capaz de aceitar-se dessa forma” (p. 62).
Contudo, esse
entendimento de MFV ao ver a sua sobrinha “no canto”, demonstra um
funcionamento não saudável, com interrupções, pois manifesta o mecanismo de
evitação proflexivo em que ela vive tendo como referência existencial a sua
sobrinha. Contudo, o fato de MFV não ter se desestruturado ou se comportado de
forma histérica, mas reflexiva, onde pôde perceber que hoje se encontra melhor
e não ficou vulnerável a ponto de perder o controle, também assinala um
desenvolvimento saudável em seu processo psicoterapêutico. Nesse sentido,
nota-se que MFV tem utilizado seus próprios recursos, mesmo que de forma
rudimentar, mas já há indícios de um ego que está se estruturando, mais forte e
se colocando de forma mais adequada nas situações. Segundo Corey (1983), um dos
grandes objetivos da terapia gestáltica é desafiar o cliente a passar de um
“apoio ambiente” para uma “auto-sustentação”. Na compreensão de Perls (in:
Corey, 1983), “a terapia visa a fazer com que o paciente não dependa dos
outros, mas fazer com que descubra, desde o primeiro momento, que pode realizar
muitas coisas, muito mais do que pensa lhe ser possível” (p.100).
5.2 Síntese: Avaliação da Evolução do Tratamento e
Apresentação dos Resultados
MFV afirma que se
sente bem melhor hoje. Quando começou o tratamento, demonstrava aspectos
físicos de uma pessoa fisicamente cansada, de autoestima baixa e de
funcionamento criativo não saudável. Não se importava com a sua aparência.
Demonstrava sentimentos e comportamentos neuróticos, onde seu grande objetivo
era evitar todo e qualquer contato para não sofrer. Seu único critério era tão
somente combater tudo e todos que tentassem prejudicá-la. Não acreditava em si,
se achava sem valor nenhum e desconfiava sempre das intenções dos outros. Tinha
pouquíssimos amigos, pois nunca teve envolvimentos íntimos ou desenvolveu
relacionamentos próximos, pois sempre e em toda vida a família foi tudo. Ela
chegou dizendo: “Sem a família a gente não é nada”.
Ao longo do
processo terapêutico de MFV, os mecanismos de evitação se manifestaram, quer em
seu cotidiano, quer no setting terapêutico, revelando estabilidade e
instabilidade, períodos de progresso e retrocesso, de bloqueio e desbloqueio,
de fluidez e de fixação. Contudo, esse processo ou evolução não passou
despercebido por MFV, ela experienciou cada momento de uma forma mais presente
e aware de seu funcionamento. O que lhe possibilitava refletir sobre
seus sentimentos e comportamentos, ora sendo acolhida, ora sendo confrontada.
Nesse sentido, os
resultados do processo terapêutico de MFV foram satisfatórios uma vez que ela
tem se manifestado como estando melhor e mais fortalecida. Na realidade,
observa-se que MFV tem um funcionamento criativo mais saudável onde se nota que
ela se coloca mais aware diante da vida, pois tem buscado viver de forma mais
independente da família e se autovalorizando. Nota-se, ainda, que MFV, hoje,
cuida mais do seu corpo fazendo atividades físicas e tem tido acompanhamento
nutricional. A vida para MFV ganhou sentido. Hoje ela tem sonhos; quando
iniciou a terapia fazia afirmações de que não tinha mais nenhum valor ou sonho,
ou seja, sua vida não tinha mais sentido de ser. Hoje, MFV pensa em trabalhar
fora e ganhar sua independência também financeira.
5.3 Prognóstico e Encaminhamentos
Diante do
diagnóstico inicial de MFV, compreendido como sendo de um funcionamento não
saudável que se estabeleceu por mecanismo de evitação de confluência, proflexão
(retroflexão e projeção) e deflexão, compreendeu-se que o prognóstico se
configurava de um funcionamento não saudável, que poderia se aprofundar e
comprometer ainda mais negativamente a dinâmica de vida de MFV. Por isso,
desenvolveram-se ações psicoterapêuticas que trabalhassem no sentido de
possibilitar a MFV um funcionamento adequado, que fluísse no sentido de lhe
proporcionar contatos adequados na sua realidade de vida, principalmente em
relação à sua família.
Para tanto,
compreendeu-se o seguinte prognóstico objetivamente, dentro do ciclo de contato
e fatores de cura, conforme a teoria de Ribeiro (2007):
a) **Confluência**: MFV tem uma estrutura psíquica
deverasmente “misturada” com a sua família, ou seja, ela construiu a sua forma
de ser no mundo indissociável da sua família. Seus sonhos e realizações foram
todos os sonhos e as realizações da sua família. Hoje, quando vê que sua
família está acabando (morrendo pai, mãe, irmãos), quer viver. Para tanto, é
fundamental que MFV desenvolva processos psicoterapêuticos que possibilitem
distinguir e precisar as fronteiras de contato dela e de sua família, uma vez que
essas fronteiras não foram constituídas adequadamente ao longo de sua vida. Por
isso, a necessidade de um trabalho de retirada constante e sistemático dessa
confluência, possibilitando a MFV condições de estar aware de sua vida para
que, assim, identifique as suas próprias necessidades e potencialidades e não
as de sua família. Certamente, essa confusão pode se constituir um fator
presente (recaída) em todo o processo terapêutico de MFV.
b) **Proflexão**: MFV, ao longo de todo o processo
terapêutico, demonstrou que tanto a sua família quanto a sua sobrinha não
reconhece o que ela fez por todos. Diz ela: “Eles não me dão valor”, “Para
eles, eu não fiz nada demais”, referindo-se à sua viagem à Espanha para ajudar
na reforma da casa, a qual foi concluída com sucesso por MFV. Da mesma forma,
ela se refere à sobrinha sobre o seu comportamento: “Eu e minha irmã (esposa do
então cunhado que mantém relacionamento com sua sobrinha) recebemos ela e seus
filhos de braços abertos, e o que ela fez? Fez essa desgraça total. Que raiva
que tenho dela”. Nota-se que MFV desenvolveu um funcionamento não saudável a
ponto de sempre se comportar na expectativa de que o outro faça aquilo que ela
fez para ele. Por isso, o processo terapêutico de MFV deve evidenciar a
construção de relacionamentos sem espera ou troca, pois a interação deve ser o
objetivo de todo e qualquer procedimento psicoterápico, enfatizando que as
relações saudáveis devem ser construídas pelo prazer de se relacionar e não por
algo que sempre esperamos como uma troca.
c) **Deflexão**: MFV, pelo fato de não ter claro os
limites de contato entre ela e sua família, também desenvolveu o mecanismo de
evitação deflexivo, o qual ocorre em MFV principalmente na sua falta de
consciência para com os seus valores pessoais e valores das pessoas que estão à
sua volta. Nesse sentido, MFV sentiu-se muitas vezes, nesse processo,
desvalorizada e sem vigor. Contudo, o próprio processo psicoterapêutico tem o
objetivo de possibilitar a MFV estar mais aware de sua vida e de suas relações;
nesse sentido, foram aplicados os experimentos, bem como os diálogos, em
especial, de confronto para auxiliar MFV na percepção de seus movimentos,
comportamentos e sentimentos e, assim, dar a ela conta de seu funcionamento.
Com o objetivo de
MFV se tornar mais aware de sua vida, foram feitos encaminhamentos:
a) um para uma academia de ginástica, em um Centro
Esportivo do Município de Maringá, e
b) outro para a Clínica de Nutrição do Cesumar. O
objetivo foi que ela fizesse atividades físicas e desenvolvesse hábitos
alimentares saudáveis. Ambos os encaminhamentos foram feitos como forma de
auxílio à psicoterapia da cliente, uma vez que MFV necessita desenvolver e
precisar mais adequadamente os seus limites de fronteira, de contato e de
conscientização de uma forma saudável para seu autoconhecimento e para seu
relacionamento com o meio, ou com terceiros.
6. Considerações Finais
Vivenciar o
estágio de clínica foi uma grata alegria. Esperava-o desde o primeiro dia que
comecei o curso de Psicologia. Tinha ideias dos desafios, dos temores, das
dificuldades e das limitações, as quais vivencio ainda, contudo pude crescer e
amadurecer nos meus conhecimentos associados aos manejos apreendidos através
das leituras e da relação dialógica estabelecida nas supervisões com os meus
colegas e, em especial, com a minha supervisora, a qual nos acolhia e nos
frustrava sempre que necessário e preciso.
Pude perceber como
é fundamental ter leitura e compreensão da base filosófica e epistemológica da
abordagem escolhida. Quando se têm os fundamentos, eles vêm à mente, diria, de
forma “salvadora”, quando menos esperamos, mas que, na realidade, se tornam algo
que já faz parte do nosso próprio ser, enquanto terapeutas.
Aprendi que a
relação terapêutica, na busca da formação de vínculo com o cliente, é algo
fundamental no processo psicoterapêutico, que deve se estabelecer não de forma
rotineira ou fruto de um tecnicismo que resulta certamente em frutos, mas de
uma condição necessária para o desenvolvimento da relação terapêutica, onde
estão presentes o psicoterapeuta e o cliente, numa relação viva entre dois
seres humanos, numa relação de descobertas para o bem, em especial, do cliente.
As aulas de
supervisão têm dois aspectos que considero essenciais para a aprendizagem da
formação profissional de psicólogo. O primeiro é que as supervisões funcionam
como uma “fonte terapêutica” para o aluno, pois não poucas vezes sentia-me
angustiado e inquieto diante do que poderia vir ou no que deveria ou não fazer;
contudo, as supervisões com a professora e orientações de leitura foram
fundamentais para o enriquecimento dessa vivência clínica. O segundo aspecto,
que considero, é a convivência com os meus colegas, onde aprendemos a ver e
ouvir como o outro estagiário se comporta diante dos seus próprios casos
clínicos. Posso dizer que a aprendizagem vem também pelo ouvir, presenciar e
vivenciar as experiências do outro colega.
Por fim, não menos
importante, foi a vivência de fazer parte da história de vida de pessoas que,
ao chegar à clínica, angustiadas e com sofrimentos psíquicos, mostravam-se
melhor e com um funcionamento mais saudável ao longo do processo
psicoterapêutico. Foi, sem dúvida nenhuma, uma experiência muito gratificante
que levo para a minha vida pessoal e profissional.
Referências
BUBER, M. EU E TU. São Paulo: Cortez & Moraes,
1979.
CARDELLA, Beatriz. A construção do Psicoterapeuta: uma
abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 2002.
COREY, Gerald F. Técnicas de Aconselhamento e
Psicoterapia. Rio de Janeiro: Campus, 1983.
COUTO, Renata S. D. Contato: suas implicações para o
processo saúde/doença. Lato & Sensu, Belém, v. 5, n. 1, p. 136-141, jun, 2004.
Disponível-www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/artigos_revistas/176.pdf
DSM IV – Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders. Disponível -
(http://virtualpsy.locaweb.com.br)
LIMA, Patrícia (2007), “Gestalt” In: Dicionário de
Gestalt-Terapia - gestaltês. São Paulo: Summus, 2007. p.p. 125-127.
MARIANO, Rubem. Relatos de sessão MFV. Maringá:
Cesumar, 2009.
MARTÍN, A. Manual Prático de Psicoterapia Gestalt.
Petrópolis-RJ: Vozes, 2008.
PERLS, F. A abordagem gestáltica e testemunho ocular
da terapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
PERLS, F. HEFFERLINE, R. e GOODMAN, P.
Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus, 1997
PIMENTEL, Adelma. Psicodiagnóstico em Gestalt-Terapia.
São Paulo: Summus, 2003.
PINTO, Ênio B. Psicoterapia de curta duração na
abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 2009.
POLTER, E., POLSTER, M. Gestalt-Terapia integrada. -
São Paulo: Summus, 2001
RIBEIRO, Jorge P. Gestalt-Terapia: refazendo um
caminho. São Paulo: Summus, 1985.
_______ O ciclo do contato: temas básicos na abordagem
gestáltica. São Paulo: Summus, 2007.
SERGE E ANNE GINGER. Gestalt: uma teoria do contato.
São Paulo: Summus, 1995.
Comentários
Postar um comentário