Relatos de uma experiência psicoterapêutica em Gestalt-Terapia: o caso MFV


Dr. Rubem A. Mariano
Psicólogo - CRP 08/14994
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Introdução

Este relatório final em Psicologia é resultado do estágio supervisionado para formação de psicólogo no Centro Universitário de Maringá (2009), hoje, Unicesumar. Durante o curso de Psicologia, foram oferecidas as seguintes áreas e abordagens: clínica, organizacional, hospitalar, escolar, jurídica, além das concepções da Psicanálise, da Comportamental Cognitivista, da Humanista-Existencial (Gestalt-Terapia), da Psicanálise Analítica (Junguiana) e da Psicologia Sistêmica.

O relatório aborda o estágio em clínica com a prática psicoterapêutica em Gestalt-Terapia. O caso escolhido é o de uma mulher (MFV), de 62 anos, solteira, que procurou a Clínica de Psicologia da instituição porque estava muito angustiada e apresentava comportamentos de irritabilidade e agressividade, especialmente com sua irmã mais nova, adotiva e com deficiência intelectual, também atendida pela Clínica. MFV foi orientada pela estagiária que atendia sua irmã a buscar ajuda. Motivada pela constante melhora da irmã, decidiu buscar ajuda para si.

A escolha do caso revela dois aspectos importantes para o estágio nessa abordagem. O primeiro destaca a importância da relação terapêutica como vínculo necessário para contribuir no processo de ajustamento criativo, uma vez que a cliente apresentava interrupções e vivenciava sofrimento psíquico através de comportamentos repetitivos. O segundo aspecto destaca o desenvolvimento de mecanismos de evitação característicos e identificáveis no funcionamento da cliente.

O atendimento ocorreu na Clínica de Psicologia do Cesumar, onde a cliente se inscreveu para ser atendida. Foram desenvolvidas ações de triagem, psicodiagnóstico (diagnóstico, prognóstico e encaminhamentos) e psicoterapia, utilizando as salas de triagem e de terapia. Os atendimentos ocorreram semanalmente às segundas-feiras, às 17h30.

Este relatório compreende 21 sessões realizadas desde a triagem até a conclusão da psicoterapia, abrangendo o período de 13 de abril a 10 de novembro de 2009. Durante o processo psicoterápico, houve feriados, recessos, faltas de MFV e suspensão das aulas devido à gripe A (H1N1).

As supervisões do caso ocorreram às terças-feiras, das 8h às 11h, na Clínica de Psicologia. Nesses encontros, o caso era apresentado em forma de relato dialógico, e a supervisora contribuía no entendimento e auxiliava o aluno na compreensão e ação diante do caso. Além disso, era obrigatória a organização do prontuário, especificando as ações administrativas e os conteúdos tratados em cada sessão, os quais eram vistoriados pela supervisora ao final de cada encontro.

 Considerações epistemológicas e metodológicas em Gestalt-terapia  

Como foi observado no primeiro parágrafo, este estágio é desenvolvido seguindo a abordagem da Gestalt-Terapia. Conforme Serge e Anne Ginger (1995), o nome de Fritz Perls, psicanalista judeu de origem alemã, é considerado um dos principais articuladores dessa abordagem em Psicologia, e o contexto do nascimento dessa nova forma de fazer terapia remonta oficialmente aos idos da década de 1950, nos Estados Unidos, mais especificamente em 1951, em Nova York. Segundo Perls (1988), o termo “Gestalt” é uma palavra alemã para a qual não há tradução equivalente em outras línguas. Dada essa questão, na língua portuguesa o termo em Psicologia Clínica tem sido utilizado, principalmente, da seguinte maneira: “Gestalt-terapia”, Psicologia da Gestalt ou “Psicologia da Forma”, sendo esta última a menos comum.

Por “Gestalt”, Perls (1988) afirma: “... é uma forma, uma configuração, o modo particular de organização das partes individuais que entram em sua composição” (p.19). Por isso, pode-se compreender, nesse sentido, que a ideia básica em Gestalt-Terapia de natureza humana é de uma relação organizada entre o todo e as partes. Esse entendimento, ainda segundo Perls (1988), é vivenciado pelo indivíduo e só pode ser compreendido nessa perspectiva vivencial. Para Serge e Anne Ginger (1995), “Gestalt” significa dar forma, dar uma estrutura significante; ou melhor, essa palavra indica uma ação prevista, em curso ou acabada, que implica um processo de dar forma, uma “formação” (p.13).

É fundamental ressaltar, logo de início, que essa abordagem psicológica teve um propósito específico e tem diversas fontes. Segundo Lima (2007), no Dicionário de Gestalt-Terapia, a Gestalt-Terapia surge como resposta às críticas e reformulações que Perls desenvolveu em relação à Psicanálise, com ênfase na chamada teoria da Gestalt de Wertheimer. Já Cardella (2002) observa o seguinte sobre a diversidade de fontes da Gestalt:

“A Gestalt tem fontes múltiplas. Essa abordagem foi criada a partir de uma série de influências teóricas e filosóficas, que se constituem num coerente, mas constante transformação, já que não possui um corpo teórico pronto, hermético e acabado... As principais influências do pensamento de Perls foram a Psicanálise, a análise do caráter de Reich, a Fenomenologia, a Psicologia da Gestalt, a teoria organísmica de Goldstein, a filosofia existencial e o zen-budismo” (pp. 33-34).

Quem também concorda com Cardella, de forma geral, são Serge e Anne Ginger (1995). Contudo, fazem o seguinte destaque: “é difícil precisar a origem e os fundamentos teóricos devido à diversidade, mais ou menos, de combinação de numerosas correntes filosóficas e de terapêuticas de diversas fontes: europeias, americanas e orientais” (p.33).

Serge e Anne Ginger (1995), por sua vez, destacam o seguinte dessa psicoterapia:

a) Dá ênfase à tomada de conscientização da experiência atual e reabilita a percepção emocional e corporal;

b) Visão unificadora do ser humano, incluindo as dimensões sensoriais, afetivas, intelectuais, sociais e espirituais;

c) Favorece um contato autêntico com os outros e consigo mesmo, um ajustamento criador do organismo ao meio, assim como a consciência dos mecanismos de evitação, processos de bloqueio ou de interrupção do ciclo normal de satisfação de nossas necessidades;

d) Não apenas explica, mas experimenta as pistas para soluções novas diante do sofrimento psíquico. Por isso, visa compreender e aprender, mas, sobretudo, experimentar para alargar ao máximo o campo vivido e a liberdade de escolha;

e) A responsabilidade é própria de cada ser humano. “O importante não é o que fizeram de mim, mas o que eu faço do que fizeram de mim”, à luz do pensamento sartreano;

f) Trabalha tanto individualmente quanto em grupo, com experimentos e técnicas para o desenvolvimento da awareness.

Do ponto de vista de uma sistematização filosófica, a abordagem da Gestalt-Terapia tem influência do Humanismo, do Existencialismo e da Fenomenologia. A seguir, algumas elaborações de Ribeiro (1985) sobre esses pressupostos filosóficos na constituição dessa abordagem; deve-se compreendê-las de forma relacional e não de maneira estanque:

a) Sobre o Humanismo: a Gestalt-Terapia se coloca ao lado das psicologias humanistas, promovendo a ideia do homem como centro, como valor positivo, capaz de se autogerir e regular;

b) Sobre o Existencialismo: a Gestalt-Terapia se fundamenta numa visão específica da existência. Ela faz um apelo constante à liberdade humana, à individualidade, à responsabilidade pessoal e coerente;

c) Sobre a Fenomenologia: a Gestalt-Terapia utiliza-se da Fenomenologia como um método de compreensão da realidade, auxiliando a ler, descrever e interpretar... Aquilo que aparece como aquilo que é aparente na coisa ou a aparência da coisa.

Observa-se, portanto, que os princípios básicos dessa abordagem ressaltam, conforme Corey (1983):

“... um tipo de terapia existencial baseada na premissa de que os indivíduos precisam encontrar seu próprio caminho na vida e aceitar a responsabilidade por si mesmos... Esta abordagem, por trabalhar sobre o princípio da consciência, faz convergir a atenção para o ‘o que’ e ‘o como’ do comportamento e da experiência no aqui-agora, integrando as partes fragmentadas e desconhecidas da personalidade” (p.95).

Nesse sentido, a Gestalt-Terapia elabora uma compreensão em que doença e saúde estão relacionadas à conscientização que a pessoa tem de seus sentimentos. Segundo Corey (1983), isso passa pelas tarefas interrompidas, que, por não serem totalmente experimentadas em estado de consciência, sobrevivem num segundo plano e são transferidas para a vida atual de um modo que interfere no contato efetivo da própria pessoa consigo mesma e com os outros (p. 98). Portanto, conforme PHG (1997), saúde e doença “é uma questão das identificações e alienações do self: se um homem se identifica com seu self em formação, não inibe seu próprio excitamento criativo e sua busca da solução vindoura; e, inversamente, se ele aliena o que não é organicamente seu” (p.49).

Sendo assim, pode-se compreender que a teoria do self (id, ego e personalidade), segundo os primeiros elaboradores da Gestalt PHG (1997), é um sistema de contatos presentes num determinado campo. Por exemplo, quando uma pessoa não faz contato, desenvolvem-se sentimentos e comportamentos inadequados, não saudáveis, que geram sofrimentos psíquicos. Portanto, fazer contato é, em geral, crescimento do organismo (humano) num dado campo/ambiente. Nesse sentido, cabe ao self o funcionamento de ajustamento criativo.

Segundo Távora (2007), a personalidade é uma “estrutura possível”, um “aspecto do self” ou um dos três sistemas principais do self aliados ao “id” e “ego”. Pode-se depreender de PHG (1997) que esses três sistemas estão relacionados ao ajustamento criativo e que a personalidade “é a figura criadora na qual o self se transforma e assimila ao organismo, unindo-a com os resultados de um crescimento anterior”. Já Serge e Anne Ginger (1995) entendem que a personalidade “é a representação que o sujeito faz de si mesmo, sua autoimagem, que lhe permite se reconhecer como responsável pelo que sente ou pelo que faz” (p.127).

Ao psicoterapeuta compete, através do diálogo Eu-Tu, em face de todas as condições próprias e inerentes à relação terapêutica, possibilitar (através também de experimentos e técnicas estritamente contextualizadas no processo terapêutico) ao cliente os meios pelos quais ele próprio vivencie uma melhor configuração e assim desenvolva ajustamentos criativos saudáveis diante das mais diversas situações, onde a conscientização, awareness, é uma condição existencial necessária e imprescindível para uma vida que busca o bem-estar, a saúde.

Observam Serge e Anne Ginger (1995) que o uso de técnicas no sentido de experimentos em Gestalt-Terapia pode ser indicado para trabalhos em grupo, numa relação dual ou, ainda, no contexto organizacional. Importante ressaltar que a aplicação das técnicas não pode estar dissociada da relação mesma do significado e entendimento do campo onde será aplicada a técnica. Em outras palavras, cabe ao psicoterapeuta, através de sua sensibilidade e criatividade, compreender e aplicar uma técnica ao sabor do melhor momento. Serge e Anne Ginger (1995) apresentam uma lista de algumas técnicas. É importantíssimo reiterar que as técnicas estão para a Gestalt como um instrumento que possibilita e desenvolve contato diante dos mecanismos de defesa ou de evitação, auxiliando no processo de ajustamento criativo saudável. Aqui estão algumas: exercício de awareness, cadeira vazia, dramatização, aplicação, interação direta, trabalho com sonho, expressão metafórica, dentre outras.

Posto isso, inicialmente, o presente relatório está dividido nas seguintes partes: 1) O caso MFV e a identificação da cliente com dados pessoais e genetograma e sua devida descrição; 2) Descrição da queixa inicial e latente; 3) História de Vida; 4) Processo psicodiagnóstico com a descrição e análise fundamentada, bem como a hipótese compreensiva; 5) Processo Psicoterapêutico com descrição e análise fundamentada; a avaliação da evolução do tratamento e apresentação dos resultados; prognóstico e encaminhamentos; 6) Considerações Finais. Por fim, as referências utilizadas para fundamentar teoricamente este relato.

 

1. O caso MFV

Dados Pessoais

Nome: MFV 

Idade: 62 anos 

Escolaridade: Ensino Fundamental 

Sexo: Feminino 

Pai: A.F.M. (falecido) 

Mãe: J.R.M. (falecida) 

 

2. Genetograma e Descrição

 

MFV (identificada por um círculo dentro do outro) é a segunda filha do casal, ambos já falecidos. Ela faz parte de uma família de nove irmãos, sendo três homens e cinco mulheres vivos. Dois irmãos são falecidos: uma irmã, a primeira filha (suicídio), e um irmão, o quinto filho (atropelamento). Tem, ainda, duas irmãs adotivas, sendo uma deficiente intelectual, a mais nova entre elas. MFV mora com duas irmãs, a segunda adotiva e a última filha biológica do casal. Tem um relacionamento muito estreito com o seu irmão mais velho dos homens.

 

2. Descrição da Queixa

2.1. Queixa Inicial

MFV chegou se queixando que sua vida é muito sofrida. Sente-se angustiada, muito irritada e é agressiva com tudo e com todos. A gota d’água, segundo ela, foi quando soube do envolvimento amoroso da sobrinha com um de seus cunhados: “isso é um absurdo”, afirmava por diversas vezes durante as primeiras sessões. MFV dizia que essa sobrinha havia acabado com a família dela: “hoje o que é minha família? Nada... Tudo por culpa dessa... Que raiva! Que vontade de agarrar o pescoço dela e bater, mas bater muito até matá-la.” Dizia, ainda, que esse sofrimento era tal que sentia no próprio corpo, quando do nada a carne começava a pular dos ossos; sentia flacidez e tremores constantemente.

 

2.2 Motivo Latente

MFV não aceitava de maneira nenhuma o relacionamento da sobrinha com o cunhado: “por que ela teve que escolher logo ele; por que ela não foi procurar outro homem por aí, têm tantos, logo gente da minha família. Ela acabou com a minha família”. Nota-se que MFV valoriza significativamente a família. MFV desenvolveu uma relação muito forte com sua família a tal ponto de não se cuidar pessoalmente para cuidar da sua família, a qual, segundo ela, foi destruída pela sua sobrinha. Contudo, tal situação de angústia e dor pode estar relacionada ao fato de sua família estar sendo literalmente destruída (as mortes dos irmãos, pais e a doença do irmão querido).

 

 

3. História de Vida

MFV é de família pobre, é a segunda filha, nasceu de parto normal. Sempre teve uma vida tumultuada. Lembra da infância, aos 3 anos de idade, quando o pai queria fugir com uma mulher. Isso marcou muito a vida de MFV, que justifica também por isso nunca ter se casado. MFV observa que nunca gostou de ser criança. Não tem boas lembranças.

Na adolescência, tinha medo do pai e de suas bravuras: “Era bravo demais”. MFV diz que só brincava quando ele saía de casa: “Nunca brincava com ele em casa”, observa. Gostava de dançar e passear, o que fazia com um dos irmãos, que a levava sempre aos bailes. Lembra com saudade e estima desse tempo. No final da adolescência, esse irmão de MFV se casou. Ela diz que chorou muito. Ficou muito triste.

Na juventude, por causa do casamento desse irmão, parou de sair e ficou toda a sua juventude em casa, cuidando da família, sem sair. MFV observa que teve um namorado aos 19 anos e nunca mais se relacionou com ninguém.

Sempre trabalhou como doméstica em casa. Quando tinha mais de 50 anos, foi morar na Espanha com a finalidade de ajudar a família a reformar a casa onde mora atualmente. Ali, trabalhou como doméstica e babá durante três anos, quando retornou ao Brasil devido ao falecimento dos pais e de uma de suas irmãs.

Atualmente, mora junto com a irmã adotiva mais nova e outra irmã que tem um salão de beleza. Ela fica responsável pelo serviço da casa e pela irmã. Não trabalha fora hoje, mas diz que tem muita vontade de ganhar seu próprio dinheiro: “Pois as pessoas respeitam mais quando a gente tem dinheiro, quando a gente não tem, elas não respeitam a gente, não é?”, observou certa vez.

Segundo MFV, o que mais lhe indigna é que sua família acabou por causa dessa mulher (sua sobrinha) e agora não tem mais aqueles momentos gostosos e maravilhosos da adolescência, quando todos se reuniam para passar juntos as festas de Natal; ela lembra com muita saudade e alegria.

MFV teve uma vida muito conflituosa com o pai, marcada por sentimentos de ódio e raiva na infância, pois o considerava um monstro. Segundo ela, tinha muito medo do pai até que um dia, na juventude, motivada pelo seu irmão, com quem nutre um relacionamento muito estreito e que é muito querido por ela, enfrentaram-no e ela pôde dizer o que pensava dele. Segundo ela, seu pai fazia sofrer muito sua mãe e ela não entendia como a mãe aguentava todo aquele sofrimento. Da mãe tinha profundo respeito e consideração: “Aquilo que é mulher”. Seu pai, segundo MFV, tinha comportamentos estranhos, como tentar seduzir suas irmãs. Ela afirma que o que mais a indignou foi a tentativa dele de seduzir sua irmã mais nova, a adotiva e deficiente: “Que absurdo!”, exclamava. MFV afirmava categoricamente que era por tudo isso que nunca veio a se casar: “Eu não quero sofrer igual à minha mãe”, sempre concluía.

MFV tem uma história de perdas em sua família: primeiro morreu o irmão mais novo dos homens, há 19 anos; durante sua viagem para a Espanha, em 2004, onde permaneceu por três anos, perdeu sua irmã mais velha que se suicidou e os pais que faleceram. Mais recentemente, ficou sabendo que o irmão mais velho dos homens, a quem ela tanto considera e com quem tem um relacionamento estreito, que para ela é o esteio da família, está com câncer. Interessante observar que na primeira sessão, do dia 13/04, MFV relatou todas essas perdas e o episódio amoroso da sobrinha com o cunhado. Assim se expressou:

“Eu tenho vontade de matá-la” (sobrinha). Ela não poderia ter feito isso. Ela acabou com a nossa família. No final do ano, estávamos acostumados a receber uma multidão de gente. Nesse ano não veio ninguém. Foi o pior Natal da minha vida. Ela destruiu a minha família. E olha que foi a gente que a acolheu. Minha irmã chegou a cuidar dela. E olha o que ela fez, retribuiu. Eu não quero saber dela nem do filho que ela teve com meu cunhado. É uma tristeza só. Que dor. Que sofrimento eu estou passando. Minha irmã, após a separação, ficou deprimida até hoje.

“Meu sentimento é que a minha família está destruída. Ela é culpada por tudo isso. Não quero ver ela nunca mais, nem o filho dela. Para mim, essa criança é consequência dessa união errada. Minha vida é uma tristeza só.

“Meu irmão, de 58 anos, mais novo do que eu. Ele é o esteio da nossa família. Sabe aquele em que a gente se apoia e busca refúgio? Ele é assim. Ele descobriu que está com câncer (fica emocionada e chora). Agora não quer saber de tratar. Ele é separado. Ficou bravo quando soube. Rasgou o papel do médico. Tem medo de morrer.

“Me sinto totalmente impotente. Me sinto uma inútil. Minha família está totalmente destruída. Primeiro minha irmã se suicida, meus pais morrem, agora fico sabendo do câncer do meu irmão. (fica emocionada). É duro, mas o que é pior do que a morte... é a separação. E ela foi culpada pela destruição da minha família. A morte chega um dia para todos, mas a separação da família a gente não pode admitir. Só vejo destruição. Me sinto perdida. Tudo por causa de uma pessoa, por causa dela (sobrinha).

 

“Minha mãe foi maravilhosa, mas meu pai era mulherengo. Quem sabe foi por isso que eu nunca casei. Minha mãe ensinou a gente a gostar da família. Sou apegada demais à minha família, o que dói mais hoje é o câncer do meu irmão (chora).”

 

4. Processo Psicodiagnóstico

4.1. Descrição e Análise Fundamentada

Em Gestalt-Terapia, fazer psicodiagnóstico não é um ato estanque ou explicativo, mas sim contínuo (processo), descritivo e interventivo. Segundo Pimentel (2003), o modo diagnóstico fenomenológico e da Gestalt-Terapia difere dos modelos tradicionais explicativos pelo modelo compreensivo. Neste modelo, valoriza-se simultaneamente a ação compreensiva e interventiva desde o início do contato com o cliente, uma vez que, na perspectiva humanista-existencial, há uma relação dialógica, Eu-Tu, um encontro entre dois seres humanos, cliente e psicólogo, um todo e não partes distintas e dissociadas. É nesse sentido que não se entende o psicodiagnóstico como uma etapa distinta do processo psicoterapêutico, onde deve haver procedimentos específicos e restritivos a este momento. Nesse sentido, pode-se afirmar, à luz das elaborações de Pinto (2009), que o psicodiagnóstico deve ser entendido como pensamento diagnóstico processual, pois ele nunca está pronto, mas sempre em elaboração, pois durante a relação terapêutica deve haver sempre uma calibragem constante para a atualização do funcionamento do cliente.

Contudo, em Gestalt-Terapia, as primeiras sessões, como todo encontro, devem possibilitar conhecimento, no caso específico, sobre a queixa trazida pelo cliente. Essas sessões, como já observamos na fundamentação teórica na introdução deste relatório final, devem ser um ato contínuo onde os procedimentos metodológicos da fenomenologia e da Psicologia dialógica atuam observando, descrevendo, intervindo e contextualizando através, principalmente, da redução fenomenológica, para se estabelecer assim uma organização e, consequentemente, uma compreensão apropriada da queixa. É fundamental que esse procedimento seja interativo entre cliente e psicólogo, seguindo o modelo dialógico de Eu-Tu de Buber (1979).

O objetivo, portanto, do ponto de vista do psicoterapeuta é buscar informações, contatar, dialogar, empatizar e facilitar ao cliente que possa trazer para a relação terapêutica não apenas a sua queixa, como se essa existisse por si mesma, isolada, mas fundamentalmente a sua forma de funcionar, de ver o mundo, de uma consciência tomada por um contexto próprio, de sua forma, por fim, de estar-no-mundo (Pimentel, 2003).

Melnick e Nevis, citados por Pinto (2009), propõem cinco razões para se fazer um diagnóstico em Gestalt-Terapia, as quais apresentam aqui em forma de imagem:

a) Como uma bússola para conhecer e orientar o caminho;

b) Como uma conversa entre cliente e psicólogo, sem pressa e ansiedade, que revela a figura, a queixa;

c) Como uma atividade interdisciplinar entre Gestalt-Terapia com outros sistemas de diagnósticos para melhor compreensão, por exemplo, da queixa;

d) Como uma relação que se expressa no presente considerando passado e futuro, sem subestimá-los ou superestimá-los;

e) Como uma ponte para criação de vínculos com outros colegas de outras abordagens.

Neste caso, foram realizados os procedimentos administrativos de triagem e psicodiagnóstico através de entrevistas, bem como experimentos sob a ótica da Fenomenologia e da Psicologia dialógica como forma de compreender a queixa da cliente.

Inicialmente, procedeu-se o acolhimento através de uma atitude empática na relação terapêutica. Tal atitude possibilitou à cliente expressar, durante as duas primeiras sessões, sua angústia e dor e, assim, notou-se uma redução da ansiedade. Em continuidade, na terceira sessão, puderam ser feitas as perguntas do questionário de triagem e o fechamento burocrático dos compromissos da cliente e do estagiário.

No desenvolvimento do psicodiagnóstico, foram empregados procedimentos próprios da concepção Humanista rogeriana e buberiana, onde foi valorizado o diálogo como fator imprescindível para a compreensão da dinâmica psíquica da cliente.

As entrevistas foram fundamentadas na metodologia fenomenológica de redução com o objetivo de aprofundar, precisar e calibrar a queixa da cliente. Como bem observa Pinto (2009) ao tratar, em seu livro “Psicoterapia de Curta Duração na Abordagem Gestáltica”, sobre a Psicologia Fenomenológica: “O importante no diagnóstico é uma atitude que possibilite o aparecimento do fenômeno em sua originalidade. Isso implica que, no correr da situação terapêutica, o imediato não seja interpretado à luz de referências anteriores, mas à luz que busca o sentido da experiência para o cliente” (p.103).

Nessa perspectiva, também foi utilizado um experimento denominado “lista das pessoas mais importantes”. A cliente tinha que escrever numa folha de sulfite o nome das pessoas mais importantes para ela. Esse experimento foi muito oportuno, pois, aliando a redução fenomenológica e o diálogo, ao longo das sessões, fez a cliente estar aware de seu funcionamento. No que diz respeito ao diálogo para abordagem, Pinto (2009) observa: “A premissa básica que sustenta a importância da congruência, do acolhimento e da inclusão para a relação terapêutica é a de que a boa psicoterapia se dá por meio da alteridade” (p.149). Nesse sentido, também o uso do diálogo está na perspectiva teórica de Martin Buber acerca da relação Eu-Tu e Eu-Isso. Conforme Pinto (2009), “É com fundamento em Buber que podemos afirmar que a Gestalt-Terapia é uma terapia dialógica, ou seja, para ocorrer a psicoterapia, é preciso que ocorra um diálogo entre terapeuta e cliente” (p.149); assim se pode perceber do relato da sessão a seguir:

_E.: A senhora vai escrever nessa folha de sulfite o nome de pessoas importantes para a senhora?_

_C.: Bem... a primeira é a Z. Ela é muito importante para mim. O R., apesar de tudo que ele fez, ele é importante para mim. Não sei se vou perdoá-lo, mas ele é muito gente boa. Gosto demais dele e da E._

_E.: Depois que ocorreu aquela situação envolvendo ele e a sua sobrinha, a senhora nunca mais conversou com ele?_

_C.: Nunca mais. Nunca mais. Outra pessoa muito especial é o E. Esse meu irmão é demais. Ele é o primeiro. Tem a C., M., J., e também a Ja., essa, apesar de tudo, eu gosto muito dela. Ela gosta de mulher. Sabe como é, a gente fica muito triste com tudo isso. Fica mesmo. Tenho ainda meus sobrinhos. É, acho que é isso._

_E.: A senhora não está esquecendo ninguém?_

_C.: Esses que eu coloquei são mais daqui da cidade e da região. É verdade que tem mais gente, mas esses são os mais próximos._

_E.: Então não esqueceu ninguém?_

_C.: Não._

_E.: E onde está o nome da C.?_

_C.: Essa não precisa. Não tem valor nenhum._

_E.: É mesmo. Por quê? O que você sente?_

_C.: Ah... Eu não fiz nada que tenha valor. Eles nem se lembram de mim. Sou eu quem se lembra deles. Eu não fiz nada de valor, sabe?_

_E.: A senhora listou cada nome falando do valor que cada um tem para a senhora. A senhora não tem valor para eles?_

_C.: Acho que não._

_E.: A senhora não fez uma viagem e foi para a Espanha para construir e reformar a sua casa?_

_C.: Sim. Mas eles não se lembram disso. É isso que eu acho._

_E.: É, C. Veja como as coisas estão muito misturadas. A senhora se vê misturada e não consegue ver o seu valor._

_C.: É, quem sabe eu deveria tomar outro rumo. Mas eu, como falei pra você, fui criada daquela maneira com o meu pai e fiz essa opção. Entreguei-me e vivi por eles..._

_(C. começa a falar do relacionamento dela com a família e se distancia do foco principal da conversa, que é ela. Com isso, a sessão chega ao seu final)_

_E.: C., como é difícil, ah... ah..._

_C.: Verdade._

_E.: Quero que você, durante a semana, liste para mim os seus sonhos, o que você já teve e o que tem, para a gente conversar, OK. Infelizmente a nossa hora chegou._

_C.: É... meus sonhos (suspira, como se cansada...) não sei se os tenho._

Como se pode também notar pelo relato acima, houve um procedimento de confrontação através do diálogo que se intensificou nas próximas sessões. Esse procedimento de confronto possibilita desencadear ansiedade (uma técnica própria da psicoterapia de curta duração (Pinto, 2009)) e faz a cliente refletir. No caso, o objetivo era possibilitar a MFV separar o que é dela e o que é do outro.

Nesse sentido, pode-se ainda reiterar que, como ela nunca teve uma vida independente, mas sempre desenvolveu um funcionamento criativo de dependência onde prevaleceram relações confluentes, MFV desenvolveu um ajustamento criativo não saudável com o meio onde se encontra. Assim, observa-se que MFV desenvolveu mecanismos de defesa ou evitação, em especial o de confluência, onde assinala relações sem precisar os devidos limites de contato, ou seja, até onde vai sua vida pessoal e até onde começa a vida de sua família e vice-versa.

Por fim, no que diz respeito ao experimento utilizado, possibilitou a MFV fazer um exercício de reflexão e autorreflexão, pois ao listar o nome das pessoas, “pensava em voz alta” e revelava assim que estava presente naquele nome. Isso possibilitou ainda se deparar e se surpreender, diga-se de passagem, com seus pensamentos e comportamentos, onde nessa lista não constava o seu nome. Isso lhe chamou a atenção e possibilitou abrir um diálogo mais apropriado entre ela e o estagiário.

 

4.2. Hipótese Compreensiva

A angústia, a irritabilidade e a agressividade que têm incomodado MFV são entendidas por ela como sendo culpa exclusiva de uma sobrinha que se envolveu amorosamente com um de seus cunhados. Esses são sentimentos típicos, neste caso, de um ajustamento criativo não saudável, onde têm funcionado através dos mecanismos de evitação, dentre os quais se destacam a confluência, a proflexão (retroflexão e projeção) e a deflexão.

Aliado a esse pressuposto conforme a Gestalt, pode-se notar que MFV, segundo o DSM-IV (http://virtualpsy.locaweb.com.br), tem uma personalidade característica da tipologia esquizotípica: “de um padrão invasivo de déficits sociais e interpessoais, marcado por agudo desconforto e reduzida capacidade para relacionamentos íntimos, além de distorções cognitivas ou perceptivas e comportamento excêntrico”. Nas entrevistas iniciais, MFV faz questão de ressaltar que sempre fala tudo aquilo que sente para as pessoas que a machucam: “Boto tudo para fora, não quero nem saber”, ressaltou certa vez.

A presente hipótese compreensiva pode ser assim articulada. Os sentimentos que fazem MFV sofrer psiquicamente são sentimentos adquiridos por um comportamento defensivo, ajustamento criativo, contra as ameaças do meio. Pode-se conjecturar que essas ameaças tenham relação com o seu pai, o qual é entendido por MFV como sendo “monstro”, “muito bravo” e “mulherengo”; ela afirma ter tido muito medo dele na infância. Contudo, MFV desenvolveu também sentimentos ternos por outros membros da família, como a mãe e, principalmente, o irmão mais velho dos homens. Ela desenvolveu com esse irmão um relacionamento muito estreito, ao longo de sua infância, adolescência e juventude, a ponto de identificá-lo como sendo o esteio da família: “Meu irmão, de 58 anos, mais novo do que eu. Ele é o esteio da nossa família. Sabe aquele que a gente se apoia e busca refúgio. Ele é assim...” e “Outra pessoa muito especial (para mim) é o E. Esse meu irmão é demais. Ele é o primeiro.”

Tomando a história de vida de MFV através dessas declarações em destaque, observa-se que ela desenvolveu mecanismos de evitação não saudáveis para sua existência. O primeiro que se nota acentuadamente é o de confluência. MFV demonstra estar desenvolvendo um funcionamento confluente crônico (Serge e Anne Ginger, 1995), pois não consegue precisar as fronteiras de contato entre ela e sua família. Apesar de MFV mostrar-se uma pessoa que “fala tudo que vem à cabeça”, não consegue ter uma vida própria (MFV só teve um único relacionamento amoroso que terminou quando o rapaz lhe pediu em casamento).

Outro mecanismo de evitação presente no funcionamento de MFV é a proflexão. Ela se queixa do meio pela destruição de sua família (sobrinha e dos familiares que acham normal o relacionamento da sobrinha com o ex-cunhado), não admite contato ou envolvimento afetivo íntimo (sempre fez a opção de não se casar para não sofrer como a sua mãe, afirma ela), sendo assim desqualifica aqueles que não agem conforme ela espera que o façam. Segundo Serge e Anne Ginger (1995), o mecanismo de evitação da proflexão “seria uma combinação de projeção e retroflexão: fazer ao outro o que gostaríamos que o outro nos fizesse” (p.139). Como foi anotado nos relatos acima, ela espera que seus familiares tenham a mesma consideração que ela tem por eles; contudo, como ela não tem claros para si os seus limites, por estar em estado de confluência, também projeta os seus conteúdos neuróticos no meio. Na questão da projeção, conforme Serge e Anne Ginger (1995), “é a tendência a atribuir ao meio a responsabilidade por aquilo que tem origem no self” (p.135) ou, ainda, se tomarmos a classificação do DSM-IV (http://virtualpsy.locaweb.com.br), observa-se que os indivíduos de personalidade esquizotípica: “... muitas vezes têm ideias de referência (isto é, interpretações incorretas de incidentes casuais e acontecimentos externos como se tivessem um significado particular e incomum, especificamente destinado a eles).”

Possivelmente, MFV fez do episódio de envolvimento da sobrinha com seu cunhado uma projeção, diante das ameaças presentes que, ao longo dos tempos, têm assolado a sua família. As constantes e sucessivas perdas têm causado muito sofrimento, pois ela não desenvolveu um ajustamento criativo de retirada (Ribeiro, 2007), mas sim tem estabelecido a confluência.

Diante disso, a presente hipótese compreensiva assinala a necessidade de terapia para MFV para possibilitar à cliente condições de um ajustamento criativo saudável. A terapia indicada deve focar, em especial, no desenvolvimento de sentimentos que advenham da retirada em resposta ao mecanismo de confluência, para que MFV possa precisar e distinguir os seus sentimentos e os sentimentos dos outros, no caso, de sua família. Segundo Couto (2004), “A retirada é o mecanismo pelo qual o indivíduo é capaz de diferenciar-se e sentir-se singular, saindo quando necessário, vendo-se como diferente do outro” (p. 3).

Por fim, MFV apresenta o distúrbio de contato deflexivo. Nota-se que ela desenvolve comportamentos de estilo histérico (vontade de esganar e enforcar a sobrinha), com afetividade impulsiva (diz que não consegue se controlar e não se responsabiliza pelo que pode fazer com essa sobrinha) e tem sentimentos de insegurança (medo de ficar só). Faz-se necessário trabalhar sentimentos que a levem a se fazer presente; fundamentalmente estar aware de sua vida e existência.

 

5. Processo Psicoterapêutico

5.1. Descrição e Análise Fundamentada

Conforme foi identificado no psicodiagnóstico, MFV se encontrava angustiada, irritada e agressiva com tudo e com todos que se relacionavam mais intimamente, porque havia desenvolvido um ajustamento criativo não saudável, onde estava funcionando através dos mecanismos de evitação, dentre os quais se destacavam a confluência, a proflexão (retroflexão e projeção) e a deflexão.

Assim, o processo psicoterapêutico, fundamentado nas elaborações de Ribeiro (2007), foi instaurado para possibilitar, no caso da confluência, as condições para MFV estar ciente “do que é seu e o que é dos outros”, distinguindo a vida pessoal da vida familiar, que no caso se encontrava “misturada” causando sofrimento psíquico a ela. No caso da proflexão, que segundo Martín (2007) esse mecanismo de evitação também comporta os mecanismos de evitação da retroflexão e da projeção, o objetivo psicoterapêutico era possibilitar a MFV viver suas relações pessoais de forma interativa, ou seja, “se aproximando das pessoas sem esperar nada em troca”, “agindo de igual para igual” ou, ainda, “agindo pelo próprio prazer sem esperar do outro, retribuição”. E, por fim, no caso da deflexão, devido a não estar claro para MFV as fronteiras de contato provocadas pelo seu funcionamento confluente, o objetivo psicoterapêutico era “conscientizá-la”, “torná-la mais atenta ao que ocorre à sua volta”, “dar conta de si, do seu funcionamento, fazendo com que perceba de maneira mais apropriada possível o que é seu e o que é do outro”.

Apesar de MFV demonstrar um forte comportamento confluente com sua família, que a fazia sofrer de angústia, inicialmente, ela sinalizava uma potencialidade de mudança, já nas primeiras sessões, assim ela se expressava no diálogo com o estagiário:

_E.: A senhora logo no começo disse que quer dar mais atenção para a senhora. Isso é uma coisa boa, foi isso mesmo que a senhora me disse?_

_MFV.: É verdade. Sabe, a gente cuida muito dos outros, mas esquece da gente. Mas é difícil. Minha mãe foi sempre muito calada. Eu dizia para ela que eu não ia ser assim. Mas sabe... eu já engoli muita coisa... Hoje estou diferente... Dou às vezes uns gritos para ver se me alivia, mas ainda sempre fica alguma coisa._

É importante considerar que, em Gestalt-Terapia, quando a pessoa não consegue desenvolver sua existência de forma saudável para o crescimento através de ajustamento criativo, notam-se a presença de mecanismos de defesa ou de evitação (esses foram apresentados inicialmente por FHG (1997): confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo), os quais interrompem o funcionamento organísmico para o crescimento adequado caracterizando assim também uma dinâmica não saudável. Nessa perspectiva, Aguiar (2005) entende saúde como possibilidade de fluidez na satisfação contínua das necessidades emergentes, de acordo com o contexto e o momento, e doença, por sua vez, como a impossibilidade de fluidez onde se desenvolvem comportamentos rígidos, repetitivos e aspectos neuróticos.

À luz da teoria do contato, pode-se elaborar que saúde, em Gestalt-Terapia, é fazer contato adequado e doença é contato inadequado. Segundo Martín (2008), “o contato é uma das principais necessidades psicológicas do ser humano. Sem ele, a pessoa se vê sujeita a desajustes marcantes da personalidade e, em casos extremos, à morte” (p.55). Portanto, o contato é responsável pela condição própria de como o ser humano vivencia e se desenvolve ao longo de sua existência. No entendimento de Ribeiro (2007), contato é:

“O modo como uma pessoa faz contato consigo e com o mundo expressa igualmente o grau de individuação, maturidade e auto entrega que vive, em dado momento, porque contato é a expressão experienciada e visível da realidade interna de si mesmo. Tudo na natureza é contato e sem ele tudo perde sentido, agoniza e morre” (p.29).

Nesse sentido, o processo psicoterapêutico tem como objetivo possibilitar ao cliente estar aware em sua vida; fazer contato é terapeuticamente dar-se conta. Nas palavras de Martín (2008), “o dar-se conta é a capacidade de todo ser humano de perceber o que está acontecendo dentro de si mesmo e no mundo que o rodeia. É a capacidade de compreender e entender aspectos de si mesmo e situações ou qualquer outra circunstância ou acontecimento que se manifeste em seu mundo” (p.45).

Diante disso, procedeu-se o trabalho psicoterapêutico administrativamente, utilizando reduções fenomenológicas, relação dialógica com intervenções terapêuticas como respostas de continuidade, inquisitiva (exploratória), interruptora, usando analogias, confronto, autoexpressão, colocação de limites e reflexão de conteúdo verbal; bem como foram utilizados experimentos como a lista das pessoas mais importantes; frases questionadoras em forma de um presente para desencadear ansiedade, e a cadeira vazia para a cliente estar mais aware de seus sentimentos. Segundo Polster e Polster (2001), compreendem que o experimento em Gestalt-Terapia é uma tentativa de recuperar a conexão entre o falar sobre e a ação, de agir contra o beco sem saída do falar sobre, ao trazer o sistema de ação do indivíduo para dentro do consultório; ou seja, trazer situações não acabadas de um outro lugar para serem vivenciadas no setting terapêutico, servindo inicialmente como suporte externo até que o cliente desenvolva o seu próprio suporte ou autossuporte.

Já com relação aos conteúdos, foram trabalhados os sentimentos e comportamentos de angústia, irritabilidade, ódio, solidão, raiva, tristeza, dor, fracasso, potencialidade, força, desejo, vida, destruição, impotência, frustração, morte, tristeza, depressão, esperança, certeza, dúvida, confiança, desconfiança, amor, coragem, firmeza, fragilidade, medos, vulnerabilidade, constância, inconstância, superação, acreditar, aprender, conhecer, experimentar, vivenciar.

O presente processo terapêutico, dentro de uma compreensão do ciclo de contato e fatores de cura, na perspectiva teórica de Ribeiro (1999, 2006 e 2007), teve como objetivo, portanto, possibilitar a MFV o desenvolvimento de um funcionamento criativo saudável. Nesse sentido, era necessário trabalhar terapeuticamente um funcionamento que possibilitasse a fluidez e, consequentemente, o bem-estar para MFV, a qual havia chegado se queixando de angústia, irritabilidade e raiva de tudo e de todos com quem convivia.

Assim, procedeu-se utilizando as intervenções administrativas com o objetivo de desbloquear os mecanismos de evitação presentes em MFV (confluência, proflexão (retroflexão e projeção) e deflexão).

A psicoterapia de linha humanista-existencial-fenomenológica observa a seguinte visão de ser humano:

“Diferentemente das terapias “dinâmicas”, que se propõem a reconstruir personalidades, o propósito das terapias humanistas é libertá-las, uma vez que as características de personalidade potencialmente realizáveis continuam presentes, ocultadas por atitudes que as impedem ou limitam severamente sua expressão, isto é, elas não precisam ser reconstruídas, mas desveladas, conhecidas, apropriadas” (Pinto, 2009).

No caso de MFV, tal era a sua vivência confluente com sua família que ela própria, ao longo do processo psicoterapêutico, reconheceu essa relação, denominando-a de “é muito difícil eu separar”. Assim pode-se notar do diálogo terapêutico:

_E.: Na próxima sessão, vamos retomar aquela questão de perceber a MFV da família e a MFV enquanto pessoa individual?_

_MFV.: É muito difícil eu separar. Muito mesmo. Está difícil._

_E.: É... Vamos ter que trabalhar essa questão. A senhora concorda. Parece que está tudo misturado entre a MFV da família e a MFV pessoa, não é?_

_MFV.: Sim. É difícil... Não é fácil pra mim. Não sei como separar isso._

Segundo Ribeiro (1999), os objetivos do terapeuta são “desenvolver o lado positivo da pessoa, a colocando frente a frente com o seu poder pessoal e permanecer o mais possível no presente, para que o cliente experiencie a realidade assim como se apresenta” (p. 146). Nesse sentido, foi utilizado o experimento da lista dos nomes mais importantes para MFV. O objetivo era proporcionar a ela estar ciente desse seu funcionamento confluente e, simultaneamente, possibilitar a retirada necessária para um funcionamento de fluidez. Nessa oportunidade, MFV sentiu-se profundamente confrontada, apesar de manifestar-se sabedora dessa relação, ou seja, ela só dava valor à família e esquecia-se de si. Questionada, através da redução fenomenológica, sobre sentimentos que tinha de si mesma, manifestou-se da seguinte maneira:

_E.: MFV, em nossa última conversa uma coisa que marcou muito, veja se isso procede. Quando eu perguntei onde estava o nome da C. nessa lista? Você me respondeu que não podia aparecer porque você não tem nenhum valor. O que seria ter valor para você?_

_MFV.: Ser respeitada. Considerada. Pelo fato de não ser reconhecida. Sabe... Eu fiz o que fiz e eles não reconheceram._

_E.: Quem?_

_MFV.: A dita cuja, minha sobrinha. Eu acolhi a família dela e veja o que ela fez comigo._

_E.: Você se sente fracassada na sua vida?_

_MFV.: Sim. Sinto-me muito. É dolorido._

_E.: Qual é o seu valor?_

_MFV.: Nenhum. Não tenho feito nada na minha vida que marque. Não fiz nada que seja lembrado. Não fiz nada de importante.

MFV sempre se considerou uma pessoa que não desenvolveu relações próximas, íntimas ou de confidências; sempre se sentiu sozinha, frágil e fraca, principalmente agora quando a sua família está “acabada”, chegou a afirmar. Segundo Martín (2008), o mecanismo de evitação da retroflexão inclui sentimentos de inferioridade, pois manifesta que as relações consigo mesma estão perturbadas, pois se vendo inferior também trata as pessoas de forma inferior, querendo encobrir a sua arrogância. 

Em todo o processo psicoterapêutico, para mais ou para menos, mas sempre constante, MFV considera a causa de tudo que lhe acontece de ruim a ela e à sua família o fato de sua sobrinha ter mantido um relacionamento amoroso com seu então cunhado. É isso que se pode ver em um dos muitos diálogos entre MFV e o estagiário sobre a sobrinha. O trecho abaixo é uma mostra muito precisa desse comportamento retroflexivo:

_E.: O que ela fez à sua família? _

_MFV.: Ela acabou. Destruiu minha família totalmente. Não é mais como naquele tempo. Era gostoso. E ela estragou tudo. O que restava. Acabou. É duro. É difícil. Quando a gente começa a esquecer, vem ela ou alguém que faz lembrar tudo que passamos, que raiva que tenho. Que vontade de pegar essa pessoa e fazer uma coisa que ela nunca esqueça. Sempre digo a quem quiser falar para ela e que ela também fica sabendo que não é para ela passar em frente de casa, porque senão eu a pego. Ah, se pego ela, faço o que ela merece. _

O comportamento retroflexivo de MFV foi sendo desvelado de tal maneira que ela se queixava de dores pelo corpo, principalmente no peito e braços, e ela afirmava: “é minha carne fica pulando, é cada tremor”. Segundo Martín (2008), essa também pode ser uma forma de retroflexão por estar fazendo mal à saúde e vir a se transformar em sintomas corporais. 

Transcorrido mais da metade do processo terapêutico, foram utilizados dois experimentos de forma sequenciada. O primeiro foi entregar a MFV um presente que teria o poder de mudar para melhor a sua vida, era um pacote com um laço, e dentro desse presente havia uma frase afirmativa: “Nada muda se eu não mudar” com o objetivo de possibilitar a MFV estar mais aware de seus comportamentos diante da terapia, pois vinha de forma reiterada culpando e projetando no meio, especialmente na sua sobrinha, por tudo que passava de sofrimento na vida. Nessa oportunidade, MFV foi confrontada a ponto de questionar o estagiário para que lhe mostrasse o que deveria fazer; contudo, o seu funcionamento neurótico atuava significativamente durante esse experimento, e ela assim chegou a se expressar: “só não me peça para falar com ela (sua sobrinha)”. A seguir, um trecho do relatório do final dessa sessão: “Ao final da sessão, MFV pergunta de forma objetiva para mim: ‘Você pode me dizer o que tenho de mudar, só não me peça para falar com essa pessoa, só isso...’. Abriu aquele sorriso para descontrair a sua agressividade, pegou o presente (frase) e levou consigo para casa. Tive a sensação que ela ficou com um profundo incômodo.” Nessa sessão, MFV ficou de pensar sobre o experimento da cadeira vazia, onde iria se deparar com a sua sobrinha.

Na sessão seguinte, MFV aceitou fazer o experimento da cadeira vazia, que é uma das técnicas, segundo Martín (2008), por excelência da terapia gestáltica, em que consiste dialogar com as diferentes partes que se opõem no indivíduo, e em colocar em contato aquelas outras que negamos ou rejeitamos. Esse experimento consiste em colocar uma cadeira vazia ou com um objeto símbolo, por exemplo, uma almofada, na frente do cliente para que ele dialogue. Conforme ainda Corey (1983), é uma maneira de levar o cliente a exteriorizar a introjeção. Diante desse experimento, MFV advertia o estagiário que ele ia ouvir coisas muito feias. Mas numa perspectiva dialógica de acolhimento e profundo respeito, o estagiário lhe afirmava que esse era o seu papel, ouvir as pessoas e ajudá-las terapeuticamente. O objetivo desse experimento foi possibilitar a MFV um suporte externo momentâneo, uma vez que, no processo terapêutico, reiteradas vezes seu funcionamento criativo era bloqueado e desenvolvia comportamentos não saudáveis. O grande objetivo sempre da psicoterapia de abordagem gestáltica é possibilitar fluidez advinda do próprio cliente, onde ele discerne sentimentos e comportamentos para a sua vida e existência. Por isso, Polster e Polster (2001) observam sobre a utilização de experimentos no processo terapêutico:

“O experimento não é nem um ensaio nem um ato póstumo. Se o homem que gritou com o seu chefe seguisse essa cena como se ela fosse um script para o futuro, ele seria visivelmente absurdo e auto sabotador. Contudo, como uma preparação para um contato mais inventivo com seu chefe, o experimento poderia abri-lo para sua autossustentação e para sua engenhosidade que anteriormente estava imobilizada” (p. 239).

MFV vivenciou um encontro com sua sobrinha de forma adequada para o experimento proposto; conversou durante 25 minutos e manifestou os mais diversos sentimentos, os quais ela também reconheceu ao ser perguntada como se sentiu. Assim se expressou: “raiva, ódio, mágoa, desejo de esganar, apertar o pescoço até que ela ficasse sem ação”.

Após essa sessão em especial, MFV trazia sempre, apesar de se sentir melhor com a terapia, que não queria estar no mesmo ambiente onde a sua sobrinha se encontrasse. Falava de um casamento de uma outra sobrinha que iria ocorrer no final do mês de outubro e que não iria, pois não se responsabilizava por aquilo que pudesse acontecer e dizia enfaticamente que era melhor não ir. Contudo, o processo psicoterapêutico caminhou trabalhando como um dos focos a retirada da confluência, que se mostrava como uma das questões. Foi solicitado a MFV que desenvolvesse atividades físicas, o que ela gostou muito, e o que ela afirmou ao longo das sessões sobre o cuidado que deveria ter consigo: “tenho que me cuidar, vou voltar a fazer ginástica, cuidar da minha saúde, preciso emagrecer (MFV foi encaminhada à clínica de nutrição do Cesumar) e ano que vem vou trabalhar. É isso... e também viajar”.

MFV mostrava-se mais fortalecida para superar as situações e enfrentá-las. Não poucas vezes trouxe situações do seu cotidiano que expressavam justamente isso. MFV sentia-se realizada a ponto de, numa determinada sessão, propor um novo assunto (uma possível mudança de figura). Sentia medo quando ouvia barulho de moto. Verificado através da redução fenomenológica, esse sentimento de medo estava relacionado à sua família e seu cuidado para com ela ou o cuidado com as outras pessoas. MFV vivenciou sentimentos de morte e tristeza de seu irmão falecido, vizinha e atropelamento de uma de suas irmãs. Contudo, mais uma vez, o funcionamento de MFV assinalava o seu envolvimento confluente, pois as sessões onde ela falava bastante eram sobre o cuidado que ela teve com outras pessoas, mas não com ela. MFV se dizia preocupada com o irmão que descobriu que tinha câncer e que ela deveria se preparar para cuidar dele, bem como cuidar de uma tia muito querida e muito enferma.

O processo psicoterapêutico de MFV chegou, nesses últimos dias, àquilo que ela havia elegido como seu grande obstáculo, encontrar-se com sua sobrinha em um mesmo ambiente, num casamento de uma outra sobrinha. MFV afirmava que não se responsabilizaria, pois

Pode-se notar com isso que MFV vivenciou sentimentos e comportamentos polarizados, uma vez que passou do receio e dúvida antes do encontro para o sentimento de segurança e confiança, pois viu como sua sobrinha se encontrava: “Ela ficou sozinha, num canto, sem ninguém”, afirmou. No entendimento de Zinker (in: Cardella, 2002), o ser humano é um conglomerado de forças polares que se inter-relacionam, mas não necessariamente no centro; por exemplo, a suavidade pode ser a polaridade da dureza, mas também da crueldade, ou mesmo da indiferença. Do ponto de vista de um funcionamento saudável, é a capacidade do indivíduo reconhecer e integrar suas polaridades.

Deve-se observar, diante disso, que sentimentos ou comportamentos polarizados fazem parte da existência humana. Quando não admitidos, demonstram um funcionamento não saudável em que se nota a rigidez e estereotipia do indivíduo em relação ao seu autoconceito, não aceitando partes de si mesmo, como a agressividade, tendendo a projetar essas partes em outros. Contudo, quando admitidos, revelam a boa e adequada saúde emocional, como se pode depreender da seguinte afirmação de Perls:

“[...] se quisermos ficar no centro do nosso mundo, seremos ambidestros - então veremos os dois polos de todo evento. Veremos que a luz não pode existir sem a ano-luz. A partir do momento em que existe igualdade, não se pode mais perceber. Se sempre existisse luz, vocês não experienciariam mais a luz. Deve haver um ritmo de luz e escuridão” (PERLS, 1977, p. 35).

Quem corrobora com o entendimento das polaridades na atualidade é Zinker (in: Cardella, 2002), ao afirmar:

“Teoricamente, a pessoa saudável é um círculo completo, possuindo milhares de polaridades integradas e inter-relacionadas [...] é aware da maioria das polaridades, incluindo aqueles sentimentos e pensamentos não permissíveis para a sociedade, e é capaz de aceitar-se dessa forma” (p. 62).

Contudo, esse entendimento de MFV ao ver a sua sobrinha “no canto”, demonstra um funcionamento não saudável, com interrupções, pois manifesta o mecanismo de evitação proflexivo em que ela vive tendo como referência existencial a sua sobrinha. Contudo, o fato de MFV não ter se desestruturado ou se comportado de forma histérica, mas reflexiva, onde pôde perceber que hoje se encontra melhor e não ficou vulnerável a ponto de perder o controle, também assinala um desenvolvimento saudável em seu processo psicoterapêutico. Nesse sentido, nota-se que MFV tem utilizado seus próprios recursos, mesmo que de forma rudimentar, mas já há indícios de um ego que está se estruturando, mais forte e se colocando de forma mais adequada nas situações. Segundo Corey (1983), um dos grandes objetivos da terapia gestáltica é desafiar o cliente a passar de um “apoio ambiente” para uma “auto-sustentação”. Na compreensão de Perls (in: Corey, 1983), “a terapia visa a fazer com que o paciente não dependa dos outros, mas fazer com que descubra, desde o primeiro momento, que pode realizar muitas coisas, muito mais do que pensa lhe ser possível” (p.100).

 

5.2 Síntese: Avaliação da Evolução do Tratamento e Apresentação dos Resultados

MFV afirma que se sente bem melhor hoje. Quando começou o tratamento, demonstrava aspectos físicos de uma pessoa fisicamente cansada, de autoestima baixa e de funcionamento criativo não saudável. Não se importava com a sua aparência. Demonstrava sentimentos e comportamentos neuróticos, onde seu grande objetivo era evitar todo e qualquer contato para não sofrer. Seu único critério era tão somente combater tudo e todos que tentassem prejudicá-la. Não acreditava em si, se achava sem valor nenhum e desconfiava sempre das intenções dos outros. Tinha pouquíssimos amigos, pois nunca teve envolvimentos íntimos ou desenvolveu relacionamentos próximos, pois sempre e em toda vida a família foi tudo. Ela chegou dizendo: “Sem a família a gente não é nada”.

Ao longo do processo terapêutico de MFV, os mecanismos de evitação se manifestaram, quer em seu cotidiano, quer no setting terapêutico, revelando estabilidade e instabilidade, períodos de progresso e retrocesso, de bloqueio e desbloqueio, de fluidez e de fixação. Contudo, esse processo ou evolução não passou despercebido por MFV, ela experienciou cada momento de uma forma mais presente e aware de seu funcionamento. O que lhe possibilitava refletir sobre seus sentimentos e comportamentos, ora sendo acolhida, ora sendo confrontada.

Nesse sentido, os resultados do processo terapêutico de MFV foram satisfatórios uma vez que ela tem se manifestado como estando melhor e mais fortalecida. Na realidade, observa-se que MFV tem um funcionamento criativo mais saudável onde se nota que ela se coloca mais aware diante da vida, pois tem buscado viver de forma mais independente da família e se autovalorizando. Nota-se, ainda, que MFV, hoje, cuida mais do seu corpo fazendo atividades físicas e tem tido acompanhamento nutricional. A vida para MFV ganhou sentido. Hoje ela tem sonhos; quando iniciou a terapia fazia afirmações de que não tinha mais nenhum valor ou sonho, ou seja, sua vida não tinha mais sentido de ser. Hoje, MFV pensa em trabalhar fora e ganhar sua independência também financeira.

 

5.3 Prognóstico e Encaminhamentos

Diante do diagnóstico inicial de MFV, compreendido como sendo de um funcionamento não saudável que se estabeleceu por mecanismo de evitação de confluência, proflexão (retroflexão e projeção) e deflexão, compreendeu-se que o prognóstico se configurava de um funcionamento não saudável, que poderia se aprofundar e comprometer ainda mais negativamente a dinâmica de vida de MFV. Por isso, desenvolveram-se ações psicoterapêuticas que trabalhassem no sentido de possibilitar a MFV um funcionamento adequado, que fluísse no sentido de lhe proporcionar contatos adequados na sua realidade de vida, principalmente em relação à sua família.

Para tanto, compreendeu-se o seguinte prognóstico objetivamente, dentro do ciclo de contato e fatores de cura, conforme a teoria de Ribeiro (2007):

a) **Confluência**: MFV tem uma estrutura psíquica deverasmente “misturada” com a sua família, ou seja, ela construiu a sua forma de ser no mundo indissociável da sua família. Seus sonhos e realizações foram todos os sonhos e as realizações da sua família. Hoje, quando vê que sua família está acabando (morrendo pai, mãe, irmãos), quer viver. Para tanto, é fundamental que MFV desenvolva processos psicoterapêuticos que possibilitem distinguir e precisar as fronteiras de contato dela e de sua família, uma vez que essas fronteiras não foram constituídas adequadamente ao longo de sua vida. Por isso, a necessidade de um trabalho de retirada constante e sistemático dessa confluência, possibilitando a MFV condições de estar aware de sua vida para que, assim, identifique as suas próprias necessidades e potencialidades e não as de sua família. Certamente, essa confusão pode se constituir um fator presente (recaída) em todo o processo terapêutico de MFV.

b) **Proflexão**: MFV, ao longo de todo o processo terapêutico, demonstrou que tanto a sua família quanto a sua sobrinha não reconhece o que ela fez por todos. Diz ela: “Eles não me dão valor”, “Para eles, eu não fiz nada demais”, referindo-se à sua viagem à Espanha para ajudar na reforma da casa, a qual foi concluída com sucesso por MFV. Da mesma forma, ela se refere à sobrinha sobre o seu comportamento: “Eu e minha irmã (esposa do então cunhado que mantém relacionamento com sua sobrinha) recebemos ela e seus filhos de braços abertos, e o que ela fez? Fez essa desgraça total. Que raiva que tenho dela”. Nota-se que MFV desenvolveu um funcionamento não saudável a ponto de sempre se comportar na expectativa de que o outro faça aquilo que ela fez para ele. Por isso, o processo terapêutico de MFV deve evidenciar a construção de relacionamentos sem espera ou troca, pois a interação deve ser o objetivo de todo e qualquer procedimento psicoterápico, enfatizando que as relações saudáveis devem ser construídas pelo prazer de se relacionar e não por algo que sempre esperamos como uma troca.

c) **Deflexão**: MFV, pelo fato de não ter claro os limites de contato entre ela e sua família, também desenvolveu o mecanismo de evitação deflexivo, o qual ocorre em MFV principalmente na sua falta de consciência para com os seus valores pessoais e valores das pessoas que estão à sua volta. Nesse sentido, MFV sentiu-se muitas vezes, nesse processo, desvalorizada e sem vigor. Contudo, o próprio processo psicoterapêutico tem o objetivo de possibilitar a MFV estar mais aware de sua vida e de suas relações; nesse sentido, foram aplicados os experimentos, bem como os diálogos, em especial, de confronto para auxiliar MFV na percepção de seus movimentos, comportamentos e sentimentos e, assim, dar a ela conta de seu funcionamento.

Com o objetivo de MFV se tornar mais aware de sua vida, foram feitos encaminhamentos:

a) um para uma academia de ginástica, em um Centro Esportivo do Município de Maringá, e

b) outro para a Clínica de Nutrição do Cesumar. O objetivo foi que ela fizesse atividades físicas e desenvolvesse hábitos alimentares saudáveis. Ambos os encaminhamentos foram feitos como forma de auxílio à psicoterapia da cliente, uma vez que MFV necessita desenvolver e precisar mais adequadamente os seus limites de fronteira, de contato e de conscientização de uma forma saudável para seu autoconhecimento e para seu relacionamento com o meio, ou com terceiros.

 

6. Considerações Finais

Vivenciar o estágio de clínica foi uma grata alegria. Esperava-o desde o primeiro dia que comecei o curso de Psicologia. Tinha ideias dos desafios, dos temores, das dificuldades e das limitações, as quais vivencio ainda, contudo pude crescer e amadurecer nos meus conhecimentos associados aos manejos apreendidos através das leituras e da relação dialógica estabelecida nas supervisões com os meus colegas e, em especial, com a minha supervisora, a qual nos acolhia e nos frustrava sempre que necessário e preciso.

Pude perceber como é fundamental ter leitura e compreensão da base filosófica e epistemológica da abordagem escolhida. Quando se têm os fundamentos, eles vêm à mente, diria, de forma “salvadora”, quando menos esperamos, mas que, na realidade, se tornam algo que já faz parte do nosso próprio ser, enquanto terapeutas.

Aprendi que a relação terapêutica, na busca da formação de vínculo com o cliente, é algo fundamental no processo psicoterapêutico, que deve se estabelecer não de forma rotineira ou fruto de um tecnicismo que resulta certamente em frutos, mas de uma condição necessária para o desenvolvimento da relação terapêutica, onde estão presentes o psicoterapeuta e o cliente, numa relação viva entre dois seres humanos, numa relação de descobertas para o bem, em especial, do cliente.

As aulas de supervisão têm dois aspectos que considero essenciais para a aprendizagem da formação profissional de psicólogo. O primeiro é que as supervisões funcionam como uma “fonte terapêutica” para o aluno, pois não poucas vezes sentia-me angustiado e inquieto diante do que poderia vir ou no que deveria ou não fazer; contudo, as supervisões com a professora e orientações de leitura foram fundamentais para o enriquecimento dessa vivência clínica. O segundo aspecto, que considero, é a convivência com os meus colegas, onde aprendemos a ver e ouvir como o outro estagiário se comporta diante dos seus próprios casos clínicos. Posso dizer que a aprendizagem vem também pelo ouvir, presenciar e vivenciar as experiências do outro colega.

Por fim, não menos importante, foi a vivência de fazer parte da história de vida de pessoas que, ao chegar à clínica, angustiadas e com sofrimentos psíquicos, mostravam-se melhor e com um funcionamento mais saudável ao longo do processo psicoterapêutico. Foi, sem dúvida nenhuma, uma experiência muito gratificante que levo para a minha vida pessoal e profissional.

 

 

 

Referências

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