Origens e fundamentos históricos do papel social e político do intelectual: notas conceituais e teóricas de estudo – uma revisão bibliográfica.

Dr. Rubem A. Mariano*
Psicólogo - CRP 08/14994
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*Doutor em Historia Política pela Universidade Estadual de Maringá e Cientista da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. 

“Todos os homens são intelectuais, embora se possa dizer: mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”

Antonio Gramsci

INTRODUÇÃO

Na elaboração inicial deste artigo, que culminou no título acima, encontrei-me imerso em duas reflexões. A primeira surgiu de um pensamento excessivamente utilitarista: “Qual é a utilidade, para a sociedade como um todo, da discussão sobre as origens e os fundamentos históricos do papel social e político do intelectual?” A segunda reflexão foi provocada por um estado de perplexidade, talvez influenciado pelo atual clima político, especialmente após os resultados eleitorais recentes, que levaram à ascensão da extrema direita ao poder, simbolizada pelos governos de Trump, nos Estados Unidos, e, no Brasil, de Bolsonaro. Diante disso, o presente artigo tratar sobre a questão da identidade de segmento social.

De maneira geral, os estudos acerca do papel dos intelectuais me fizeram refletir sobre minha própria identidade profissional, especialmente ao aprofundar-me nos conceitos gramscianos de intelectual orgânico, que discutirei mais adiante.

Quando estava elaborando este artigo, lembrei-me que, no início do ano de 2018, ocorreram dois abaixo-assinados contra a possível redução de verbas para as Ciências Humanas no Brasil: um com mais de 1.100 signatários de instituições renomadas, como Harvard, Princeton, Sorbonne e USP, e outro com mais de 15 mil sociólogos, iniciado por intelectuais de Harvard. Após diversas manifestações de universidades e movimentos sociais, foi anunciado, em outubro, o repasse total das verbas federais, sem as reduções inicialmente propostas. Também recordei alguns nomes de personalidades intelectuais que sistematicamente se manifestam, como Marilena Chauí, Frei Beto, Pastor Ariovaldo Ramos, Viviane Mosé, o Rabino Henry Sobel (falecido no dia 22 de novembro), Emir Sader, Leonardo Boff e Miguel Nicolelis, entre outros.

Contudo, me vieram algumas perguntas: se eles se manifestam, por que a opinião pública continua agindo da mesma forma, não repercutindo suas falas com mais dinamicidade, como se elas não tivessem força? Os intelectuais não estão abordando as reais necessidades do povo brasileiro em busca de direitos e justiça social? Qual é a credibilidade política que os intelectuais possuem no Brasil? Que ideia ou concepção a maioria das pessoas tem de um intelectual? O papel do intelectual é cuidar apenas de seu próprio campo, de seus interesses, ou deve representar os interesses da sociedade à qual pertence?

Diante do exposto, o conjunto de referências que fundamenta este artigo proporcionou uma reflexão incômoda, mas positiva, sobre o tema. Explico: mais do que produzir um texto sobre o papel do intelectual na sociedade, como exigência final de uma disciplina, percebi que este texto poderia ser fruto de uma atitude política. Assim, pode ser considerado um testemunho escrito da preservação historiográfica do papel social e político do intelectual, que se revela no comprometimento com valores fundamentais, como liberdade e justiça, em relação aos diversos temas que emergem do espaço público, seja no campo ou na cidade. Este é mais um dos motivos que justificam a produção deste artigo.

Nesse sentido, observa-se um constante estado de conflito e disputa de narrativas (interesses e ideologias) no espaço público. O intelectual é chamado, portanto, a atuar como intérprete da realidade social e política em que vive, emitindo e defendendo posições diante das diversas situações que enfrenta, seja local, regional, nacional ou internacionalmente. Além disso, ressalta-se que o intelectual possui uma vocação peculiar para o espaço público. Sua pertença é social e está necessariamente relacionada às esferas da política e do poder, como já observou Aristóteles em seus escritos sobre a natureza do homem na polis como um ser racional, político, social e ético.

Diante dessas considerações, surgem as seguintes questões e seus desdobramentos, especialmente para aqueles que iniciam seus estudos em História Política: Que papel social e político emergem das origens históricas do intelectual? Que tipo de discurso o intelectual anuncia? Existem diferentes tipos de intelectuais? Há conflitos ideológicos entre eles? O intelectual é independente ou é porta-voz de determinadas forças sociais, políticas ou econômicas? Em que espaço o intelectual atua na sociedade? E, por fim, quais são os fundamentos históricos, sociais e políticos do intelectual que emergem da literatura especializada estudada?

Assim, o objetivo deste escrito é apresentar algumas notas conceituais e teóricas de estudo – uma revisão bibliográfica referente às origens e aos fundamentos históricos do papel social e político do intelectual, com foco principal nos séculos XIX e XX.

Primeiras palavras

É importante ressaltar, à luz do estado da arte, que antes e depois das décadas de 60 e 70, este tema era frequentemente esquecido e relegado a livros empoeirados, de pouca consulta. Mais recentemente, especialmente na França, tornou-se uma paixão nos meios acadêmicos e intelectuais, especialmente no final da década de 90, conforme observa Sirinelli (2003). Esse interesse também chegou ao Brasil, mostrando-se pertinente para os estudos, de maneira geral, em História Política.

Posto isso, o presente conteúdo é um artigo de compilação. Segundo Eco (2008), um artigo de compilação realiza um exame crítico sobre um mesmo assunto, buscando relacionar os vários pontos de vista existentes e oferecer uma visão panorâmica útil do ponto de vista informativo. Dessa forma, este artigo adota essa estrutura para abordar o tema das origens e fundamentos históricos do papel social e político do intelectual.

            Origens e Fundamentos Históricos do Intelectual

   Inicialmente, é comum que palavras apresentem significados polissêmicos. A diversidade de sentidos aumenta, além da riqueza cultural inerente, quanto mais distante a palavra estiver de seu contexto original. Daí a necessidade de uma boa exegese e hermenêutica que possibilitem compreender o sentido original e sua significação mais fidedigna na atualidade. Para isso, é indispensável um exercício exegético que considere o contexto sócio-histórico-linguístico de uma palavra.

            No que diz respeito à palavra “intelectual”, as condições e dificuldades mencionadas não são diferentes; pelo contrário, o termo “intelectual” guarda significativa complexidade. Essa complexidade decorre não apenas da distância temporal e espacial, mas também das abordagens e metodologias empregadas em seu estudo. Nesse sentido, Sirinelli (2003) observa que o estudo do termo enfrenta problemas de compreensão e extensão, abrangendo desde uma significação sociocultural ampla, que inclui criadores e mediadores culturais, até uma definição mais restrita, relacionada ao engajamento sociopolítico. Sobre este último aspecto, Sirinelli (2003) destaca a complexidade do estudo dos intelectuais como atores políticos, cuja pesquisa exige uma grande profundidade e diversidade de fontes.

        Um dos textos clássicos que fundamenta este artigo é de Antonio Gramsci, um intelectual que deixou um legado de competência intelectual e compromisso político (Said, 2005). Gramsci (2001) nos informa que a concepção de “intelectual” ou “especialista” deriva da palavra “clérigo”, especialmente nas línguas neolatinas, e de seu correlato “laico”, referindo-se ao mundo secular. Nesse contexto, os intelectuais emergem, favorecidos pelo poder central do monarca e do absolutismo, formando uma aristocracia togada, com privilégios e uma camada de administradores, cientistas, teóricos e filósofos não eclesiásticos.

        Gramsci (2001) também observa que, de certa forma, todas as profissões, desde operários até empresários, incluem um componente intelectual como competência necessária. Assim, ele afirma que “todos os homens são intelectuais” (o que pode ser comparado ao famoso “penso, logo existo” de Descartes), mas destaca que “nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais.” Isso leva Gramsci (2001) a concluir que se formam historicamente categorias especializadas para o exercício do intelecto em todos os grupos sociais, principalmente nos grupos mais influentes, que elaboram conexões mais amplas e complexas com os grupos sociais dominantes.

        No que diz respeito à concepção de intelectual, Altamirano (2006) observa que: 1. Não há um único significado estabelecido para o substantivo “intelectual”; 2. O termo é relativamente novo, surgindo por volta do século XIX no contexto das ciências sociais, designando uma profissão ou um ator de vida pública; 3. Através de um evento público, o termo “intelectual” ganhou conotação política, notadamente com o caso Dreyfus, quando alguns intelectuais, liderados pelo escritor Émile Zola, publicaram o manifesto “Yo acuso”.

         Do ponto de vista histórico, Altamirano (2006) sugere que a existência de intelectuais, mesmo que anacrônica, pode ser observada antes das sociedades modernas, em funções como bruxos e adivinhos. Nesse sentido, o autor apresenta argumentos baseados nos estudos de Le Goff, que explica que o surgimento dos intelectuais na Idade Média europeia ocorreu devido a três condições: o desenvolvimento das cidades, a divisão do trabalho e a propagação das universidades. Portanto, segundo Le Goff (citado em Altamirano, 2006, p. 100), o intelectual é definido como “aquele que tem por ofício pensar e ensinar seu pensamento.” Pode-se inferir que o intelectual se estabelece em uma cultura tipicamente letrada, que valoriza e desenvolve tecnologias adequadas ao aprimoramento das capacidades intelectuais, como a escrita, a impressão, a leitura e a publicação de textos, possibilitando o acesso ao conhecimento, uma das bases para o desenvolvimento humano e o mundo do trabalho.

        Esse caldo cultural intelectual se intensifica na modernidade, especialmente durante o Iluminismo, embora seu nascimento se dê na Idade Média. Altamirano (2006) argumenta que o intelectual é uma figura moderna, resultado de uma nova classe emergente – a burguesia – em um ambiente favorável a valores humanistas e republicanos. Assim, o intelectual se apresenta no espaço público como um ator voltado para expressões democráticas que se constituem ao longo do tempo. Nessa perspectiva, observa-se uma valorização do intelectual, especialmente no Iluminismo, com produções escritas, influências jornalísticas e organizações de intelectuais em centros como Londres, Edimburgo, Berlim e, principalmente, na França. Isso ajuda a explicar a importância que a história dos intelectuais adquiriu recentemente, tanto na França quanto no Brasil.

        Altamirano (2006) ainda destaca que o surgimento dos intelectuais está associado a um discurso que passa de uma referência religiosa para uma ideológica. A partir das mudanças históricas, especialmente as revoluções, surge um novo conjunto de paradigmas fundamentados no humanismo, caracterizados pela secularização do pensamento. As explicações sobre temas clássicos deixaram de ser baseadas em referências religiosas, passando a ser fundamentadas em descobertas científicas nas áreas da física, sociologia e política. Assim, os intelectuais se tornam promotores de novos conhecimentos, com o ser humano como paradigma, em vez de se basearem exclusivamente em dogmas.

    Sirinelli (2003) observa que os intelectuais se organizam em grupos em torno de sensibilidades ideológicas ou culturais comuns, formando uma estrutura coletiva. Isso pode incluir: 1. A redação de revistas ou conselhos editoriais de editoras, que criam um espaço de atuação e convivência intelectual; 2. A produção e assinatura de manifestos que expressam adesão a causas sociais ou políticas; 3. Grupos de intelectuais que se reúnem em torno de teses ou temas controversos, gerando debates intensos, como a relação entre Sartre e Camus; 4. A formação de redes que expressam afinidades ideológicas sobre questões comuns.

        À medida que nos aproximamos do próximo tópico, que abordará o papel social e político do intelectual, é relevante considerar que o caso Dreyfus marca o verdadeiro significado do termo “intelectual” na história. Os autores Dosse (2007) e Altamirano (2006) defendem essa tese. Dosse (2007) observa que o caso Dreyfus é uma matriz fundamental nos estudos sobre a história dos intelectuais, apresentando um significado que indica, por um lado, o comprometimento político no espaço público e, por outro, o anti-intelectualismo, uma negação do compromisso intelectual.

        O autor é categórico ao destacar, com base nos historiadores franceses, especialmente Sirinelli, o comprometimento político dos intelectuais. Ele observa: 1. O surgimento de grupos de intelectuais jovens no início do século XIX, caracterizados por eventos próprios e ideais inter-relacionados, expressando um comprometimento ativo em seu tempo; 2. A importância das revistas como suporte essencial do campo intelectual, funcionando como redes que promovem mudanças e reagrupamentos em torno de líderes intelectuais; 3. O modelo de compromisso que, à luz do artigo publicado por Zola, conferiu ao termo “intelectual” sua verdadeira significação social e política, revelando um movimento coletivo de personalidades intelectuais.

        Quando Barrès e Brunetière criticaram o manifesto dos intelectuais, atribuindo um sentido negativo ao termo “intelectuais”, trouxeram à tona uma faceta do grupo que necessitava de maior precisão: sua identidade histórica. Segundo Altamirano (2006), o historiador Pascal Ory, em um editorial de Le Journal de 1º de fevereiro de 1898, desqualificou a ação dos intelectuais contra o caso Dreyfus, afirmando: “esses supostos intelectuais são um resíduo inevitável do esforço que a sociedade faz para criar uma elite.” Assim, o sentido de intelectual adquire um caráter social e político em questões fundamentais do cenário nacional e internacional, como a busca pela liberdade e justiça.

        O caso Dreyfus, portanto, é considerado um marco identitário do termo “intelectual”, simbolizando o comprometimento social e político. Durante este escândalo político que durou cerca de doze anos (1894-1906), um intelectual se destacou publicamente ao se manifestar em um artigo intitulado “Yo acuso”. Esse caso transcende a prisão de um indivíduo injustamente acusado, tornando-se um símbolo de resistência contra as ameaças aos fundamentos da sociedade republicana francesa, que valoriza a liberdade e a justiça. O valor atribuído ao posicionamento desse intelectual tornou-se relevante para a opinião pública francesa, devido ao contexto material historicamente constituído. Assim, o termo “intelectual” ganhou um status e sentido ideológico de comprometimento com os valores fundamentais da república e do espaço público. Vários historiadores, conforme notificado por Altamirano (2006), consideram o caso Dreyfus como um marco definidor do termo “intelectual”, transformando-o de adjetivo em um substantivo importante para os estudos em História.

          O papel social e político do intelectual

Neste tópico, a partir das leituras realizadas, afirmo que uma das chaves para compreender o papel social e político do intelectual são as condições históricas e materiais que lhe são dadas. Embora essa observação possa parecer simples, considero-a um elemento fundamental para a percepção do papel social e político dos intelectuais na sociedade, especialmente em relação às condições materiais e formais da intelectualidade, em particular na sociedade francesa. Essa afirmação é corroborada por Sirinelli (2003) e Gramsci (2001). O primeiro observa que a atenção da sociedade francesa aos intelectuais é evidenciada pelo número crescente desses profissionais e pelo reconhecimento que legitimiza suas intervenções nos debates sociais. Gramsci (2001), por sua vez, destaca a importância da escola – não apenas a fundamental, mas também as de nível médio, técnico-profissional e superior – na formação dos intelectuais. Assim, a formação educacional, entendida como a utilização das estruturas educacionais para a formação cultural do indivíduo, é um elemento imprescindível para a existência e a relevância da figura do intelectual ao longo da história, inclusive na contemporaneidade.

Gramsci (2001) ressalta que a escola, em seu sentido amplo, é um instrumento material essencial na formação dos intelectuais, atuando em diversos níveis e complexidades. Dessa maneira, a escola se torna, do ponto de vista ideológico, o local de estabelecimento e manutenção do poder hegemônico do grupo dominante, representado pela burguesia e sua complexa rede de profissões na sociedade civil e nos aparelhos estatais, que, sob o modo de produção capitalista, se consolidam como uma base social forte para a manutenção da intelectualidade burguesa. Gramsci (2001, p. 20) observa que a formação das camadas intelectuais não ocorre em um terreno democrático abstrato, mas em processos históricos concretos, onde camadas que “produzem” intelectuais frequentemente se especializam na “poupança”, referindo-se à pequena e média burguesia rural e a alguns estratos da pequena e média burguesia urbana.

Portanto, a escola é uma expressão constitutiva não de uma democracia abstrata, mas dos processos históricos concretos que moldam uma cultura democrática e republicana em desenvolvimento. Assim, é possível afirmar que o papel social e político do intelectual só pode ser exercido ou compreendido a partir desse ambiente de condições históricas e materiais, onde existe uma infraestrutura educacional que fundamenta a formação ideológica da intelectualidade burguesa. Gramsci (2001, p. 21) afirma: “Os intelectuais são os ‘prepostos’ do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político.”

Outra questão importante a ser considerada é que, segundo Gramsci (1932), as pessoas podem desempenhar uma função intelectual na sociedade. Ele as divide em dois tipos: os intelectuais tradicionais, como professores, clérigos e administradores, que, geração após geração, continuam a desempenhar as mesmas funções; e os intelectuais orgânicos, que estão diretamente ligados a classes ou empresas e representam os interesses desse grupo em busca de mais poder e controle. Gramsci descreve o intelectual orgânico da seguinte forma: “O empresário capitalista cria ao seu redor o técnico industrial, o especialista em economia política, os organizadores de uma nova cultura, de um novo sistema legal etc. Hoje, isso inclui o especialista em publicidade ou relações públicas, que desenvolve técnicas para conquistar uma maior fatia de mercado para um detergente ou uma companhia aérea.” Assim, um intelectual orgânico pode ser entendido como alguém cujo objetivo principal é conquistar clientes, obter sua aprovação e orientar consumidores ou eleitores. Gramsci (2001) acreditava que os intelectuais orgânicos estão ativamente envolvidos na sociedade, buscando constantemente mudar mentalidades e expandir mercados, ao contrário dos intelectuais tradicionais, que permanecem em suas posições enquanto os intelectuais orgânicos estão em movimento, buscando novos negócios e conquistando pessoas.

Ainda sobre a tipologia dos intelectuais, Gramsci (2001) observa que as diferenças nas atividades intelectuais se manifestam em graus quantitativos, mas que, em situações de conflitos sociais, essas diferenças tornam-se qualitativas. Isso se reflete na criação de várias ciências, filosofia e arte, enquanto as funções mais simples são desempenhadas por administradores e divulgadores do conhecimento intelectual, incluindo categorias como os militares, que vão do oficialato aos soldados e cabos.

Gramsci (2001) também observa que a modernidade produziu diversas categorias de intelectuais, tanto urbanos quanto rurais. Os intelectuais urbanos estão relacionados à indústria e suas vicissitudes, sendo subalternos, sem participar da criação e apenas obedecendo ordens. Eles constituem uma massa instrumental que coloca em prática os planos elaborados pelos líderes da indústria, que controlam as fases executivas. Em geral, os altos intelectuais urbanos se confundem cada vez mais com os líderes da indústria. Por outro lado, os intelectuais rurais são tradicionalmente ligados à massa social do campo e à pequena burguesia das cidades pequenas, aspirando ao desenvolvimento social e econômico, o que os torna muito diferentes dos intelectuais urbanos.

Por fim, Said (2005, p. 23-24) comenta sobre a análise social de Gramsci, afirmando que a concepção de intelectual como alguém que desempenha um conjunto específico de funções sociais está mais próxima da realidade do que tudo o que Benda escreveu, especialmente no final do século XX, quando surgiram novas profissões, como locutores de rádio, apresentadores de programas de TV, profissionais acadêmicos, analistas de informática, advogados nas áreas de esportes e comunicação, consultores de administração, especialistas em política, conselheiros do governo e autores de relatórios de mercado. Hoje, todos que trabalham em qualquer área relacionada à produção ou divulgação de conhecimento podem ser considerados intelectuais no sentido gramsciano.

No que diz respeito à representação, Said (2005) afirma que o papel do intelectual deve ser público, não podendo ser relegado ao ostracismo de suas atividades profissionais específicas, cuidando apenas de seus interesses pessoais. O intelectual é um indivíduo dotado de vocação para representar, articular uma mensagem e expressar um ponto de vista, uma filosofia ou uma opinião para o público. Said (2005, p. 26) ressalta que esse papel deve ser marcado por uma certa “agudeza”, ou seja, a consciência de que sua função é levantar questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas, e não ser cooptado por governos ou corporações. O intelectual deve representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete. Said (2005, p. 26) ainda complementa que o intelectual deve agir com base em princípios universais, defendendo que todos os seres humanos têm direito a padrões de comportamento decentes em relação à liberdade e à justiça, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões devem ser denunciadas e combatidas corajosamente.

O entendimento do papel social e político do intelectual, segundo Sirinelli (2003), envolve duas questões fundamentais para uma melhor compreensão: a primeira é o status complexo da história política, conforme abordado pela escola francesa, que, nas últimas décadas, revela uma concepção de suspeição da história política; e a segunda é a própria história política dos intelectuais na sociedade, considerada um grupo social pouco expressivo e atrativo metodologicamente.

Entre os papéis mais importantes do intelectual, Sirinelli (2003) destaca o exercício da criticidade. É crucial considerar que há um risco de confundir essa função essencial com uma posição política específica, seja de esquerda ou de direita. A atenção deve ser redobrada, pois as lentes ideológicas podem limitar a compreensão do verdadeiro papel do intelectual. Sirinelli (2003) observa que, até os conflitos das duas guerras mundiais, a intelectualidade de quem é de direita e a afirmação de que existem apenas intelectuais de esquerda podem levar a uma interpretação distorcida da história. Um exemplo pertinente é questionar se a esquerda francesa, como no caso da Ação Francesa, exerceu sua função crítica ao se relacionar com o poder político da época.

Quanto às explicações sobre a influência e a responsabilidade sociais e políticas do intelectual, Sirinelli (2003) argumenta que elas não se encontram no campo da ética, mas sim no campo histórico. Portanto, o entendimento, embora pertinente, não deve ser analisado apenas sob a perspectiva ética, que envolve falhas ou fragilidades morais, mas sim em relação à defasagem observada entre o despertar de gerações intelectuais sucessivas e a atmosfera política da sociedade em um determinado momento. Sirinelli (2003, p. 261) conclui que essa defasagem está ligada à natureza do campo de estudo, onde o meio intelectual é, em essência, o domínio do metapolítico (conflitos ideológicos) mais do que do político (disputas eleitorais). Entre esses dois níveis, existe um fosso quase constante. Para uma compreensão mais adequada do papel do intelectual em aspectos sociais e políticos, é necessário considerar as complexidades dessa questão e observar atentamente a relação entre ideologia, cultura política e mentalidades coletivas. Metodologicamente, Sirinelli (2003) sugere que, especialmente no contexto francês, o papel cultural e político dos intelectuais deve ser o ponto de partida para a construção de uma história política que se transforme em uma história global.

Por fim, uma das questões centrais deste artigo sobre o papel social e político do intelectual é se ele é autônomo ou se é porta-voz de determinados grupos ou forças sociais, políticas ou econômicas. Os dois principais autores que abordam essa questão de maneira aprofundada são Said (2005) e Gramsci (2001). Considero que as ideias de Said já foram contempladas, visto que o autor expressa, com clareza, o papel público de representação que o intelectual deve ter na sociedade como defensor da coisa pública. Assim, passo a discutir as ideias de Gramsci.

Para Gramsci (2001), o intelectual é um produto dialético de todo grupo social, com o objetivo de conferir ao grupo homogeneidade e uma consciência mais apropriada e precisa de sua função nos campos econômico, social e político. Nesse sentido, o intelectual orgânico é aquele que reúne condições superiores de elaboração. Um bom exemplo disso é o empresário, que representa a classe burguesa e possui competências além de suas funções de liderança e técnica. Ele também deve ser capaz de atuar em áreas adjacentes, como a econômica, organizando as massas e gerando confiança entre os investidores e consumidores. Essa competência é característica de uma elite.

Gramsci (2001) observa que os intelectuais orgânicos devem ter a capacidade de organizar a sociedade em toda a sua complexidade, incluindo o organismo estatal, visando criar condições favoráveis para a expansão de sua classe. Os intelectuais tradicionais, por outro lado, são o resultado da estrutura econômica anterior e mantêm-se como uma categoria intelectual preexistente, representando uma continuidade histórica que não é interrompida, mesmo diante de mudanças sociais e políticas radicais. Esses intelectuais parecem "flutuar" e continuar a existir, tornando-se expressões apropriadas para suprir as necessidades de coesão social do grupo dominante. Um exemplo claro são os eclesiásticos, que, durante grande parte da história feudal, desempenharam papéis significativos, como a ideologia religiosa e o desenvolvimento do conhecimento filosófico e científico.

Por fim, Gramsci (2001) explica que, quando grupos de intelectuais tradicionais se sentem ameaçados em sua continuidade histórica e na qualificação que os torna relevantes como agentes sociais, eles tendem a se autoproclamar como autônomos ou independentes, como uma estratégia de sobrevivência. Gramsci (2001) reconhece que essa autoproclamação pode ter consequências importantes nos campos ideológicos e políticos, mas questiona se essa autonomia realmente existe. A partir dos exemplos e argumentos apresentados, a resposta é um claro não.

Assim, Gramsci (2001) observa que qualquer grupo que se desenvolve em sua relação com o poder, na busca pela dominação social, luta pela assimilação e pela conquista ideológica dos intelectuais tradicionais de forma estratégica. Ao conquistar esses intelectuais, o grupo dominante acelera o processo de assimilação e conquista, tanto para a sua própria manutenção quanto para a inclusão de novos grupos de intelectuais orgânicos. Dessa forma, o grupo dominante se estabelece cada vez mais no poder, tornando-se um objeto de pertencimento desejado por outros grupos sociais, presentes em diversas categorias, sejam tradicionais ou não.

           Considerações Finais

   Nas considerações finais, não pretendo fazer uma recapitulação sistemática dos achados produzidos a partir das leituras, elaborações e análises realizadas. O próprio processo de desenvolvimento do texto, que busca responder às principais questões levantadas, possui um valor significativo de conhecimento nesta modalidade de artigo, cujo objetivo é expor informações úteis sobre o tema principal. Contudo, apresento a seguir algumas notas conceituais e teóricas, em forma de síntese, sobre o trabalho realizado:

1. Sem dúvida, do ponto de vista histórico, o intelectual é um ser social e político, especialmente no mundo moderno.

2. Sua identidade possui uma profunda complexidade, tanto pelas dificuldades de acesso às possíveis fontes originárias quanto pela sua compreensão como grupo social, que atuou de forma diferenciada ao longo do tempo e pelas metodologias utilizadas em seu estudo.

3. Uma de suas características essenciais é o uso do pensamento e do intelecto, associados a elaborações racionais críticas para a compreensão da realidade ou para a realização das diversas atividades que pode exercer na sociedade, como bem advogou Gramsci (2001) ao afirmar que todos os seres humanos são intelectuais.

4. Historicamente, a atividade e o termo “intelectual” reforçam o uso do pensamento como característica essencial do intelectual, que se constituiu em um ambiente propício ao seu desenvolvimento, com tecnologias adequadas ao universo gráfico. A valorização da atividade intelectual se torna mais significativa a partir do final da Idade Média e, principalmente, na modernidade, com destaque para o Iluminismo. Atualmente, é uma das atividades profissionais expressivas, mas com reconhecimento diversificado, conforme o contexto em que se encontra.

5. Apesar da complexidade do termo e da atividade social e política do intelectual, observa-se que há alguns consensos a partir das referências consultadas, como: a) o intelectual exerce uma atividade profissional, em seu sentido amplo e gramsciano, nas sociedades que valorizam o conhecimento e o desenvolvimento das habilidades e virtudes humanas; b) além de sua atividade específica, que o caracteriza, o intelectual desempenha um papel social e político no espaço público, contribuindo positivamente para a sociedade em que está inserido; c) não é necessariamente um partidário, apartidário ou apolítico, mas como agente social, é um ser político de primeira hora, que contribui ativamente para o processo de interpretação da realidade social, utilizando conhecimentos que podem beneficiar a sociedade como um todo, para uma melhor condição de vida; e, por fim, d) é um representante e defensor comprometido, na sociedade, dos valores fundamentais da liberdade, justiça e dignidade humana.     

 

REFERÊNCIAS

ALTAMIRANO, Carlos. Intelectuales: notas de investigación. Bogotá: Norma Editorial, 2006, p. 17-30 e p. 99-114 (Cap. 1 e 5 respectivamente: Nacimiento y peripecias de un nombre e Uma espécie moderna);

DOSSE, François. La marcha de las ideas: historia de los intelectuales, historia intelectual. Valencia: Universitat de València, 2007, p. 43-97. (Capítulo 2: El modelo del caso Dreyfus en acción entre los historiadores franceses);

ECO, U. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 2008.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Volume 2. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2001, p. 11-42;

SAID, Edward W. Representações do intelectual. In: SAID, E. W. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.19-36;

SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 231-269.

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