Martinho Lutero, Um destino: biografia, biografado e historiador-biógrafo - apontamentos conceituais e metodológicos em História.

Dr. Rubem A. Mariano*
Psicólogo - CRP 08/14994
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*Doutor em Historia Política pela Universidade Estadual de Maringá e Cientista da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.


Introdução

Neste ensaio, proponho reflexões conceituais e metodológicas sobre o gênero biografia na História. Essa abordagem é necessária, pois biografar não é uma atividade exclusiva do historiador-biógrafo, mas também envolve outras áreas do conhecimento, como Ciências Sociais, Comunicação e Literatura, além de jornalistas e romancistas.

Diante disso, a questão que norteia e motiva as reflexões a serem feitas é: o que caracteriza conceitual e metodologicamente a biografia, o biografado e o historiador-biógrafo na ciência histórica? Refletir e desenvolver essa questão possibilita entender as condições sine qua non para que o historiador-biógrafo realize sua atividade de biografar e como se relaciona, do ponto de vista ético, com o biografado.

Fazer uma biografia dentro dos marcos conceituais e metodológicos em História é distinto de como se faz em outras áreas, como no jornalismo ou na literatura. Isso não significa que, em determinados momentos, a interdisciplinaridade não esteja presente na biografia histórica. A presença de outros conhecimentos, em diálogo interdisciplinar, constitui uma das idiossincrasias da prática atual da ciência histórica.

Um exemplo desse entrelaçamento interdisciplinar é a produção do texto biográfico, na qual o historiador, a partir do uso de suas fontes, constrói a biografia da personagem pesquisada, revelando traços de personalidade e comportamento que podem advir da relação projetiva do historiador-biógrafo com o biografado.

Este ensaio aborda o tema da biografia histórica utilizando os três elementos presentes no ato de biografar: biografia, biografado e historiador-biógrafo. O objetivo desta apresentação é didático. Compreender essa tríade de forma conceitual e metodológica permite ao historiador, especificamente em sua função de biógrafo, precisar não apenas o seu objeto de pesquisa (biografado), mas também a produção do gênero textual a ser desenvolvido (biografia).

 

FUNDAMENTAÇÃO

Para responder à questão proposta neste ensaio — “o que caracteriza conceitual e metodologicamente a biografia, o biografado e o historiador-biógrafo na ciência histórica?” — construo um texto reflexivo sobre a biografia histórica, em diálogo com a literatura especializada clássica e recente. O desenvolvimento deste ensaio será feito de forma didática, através dos três elementos principais: a biografia (gênero textual), o biografado (objeto da pesquisa) e o historiador-biógrafo (sujeito da pesquisa).

Inicialmente, pretendo definir e classificar o gênero biografia de forma geral, com o objetivo de demonstrar sua amplitude e localizar a modalidade que me interessa: a biografia histórica. Segundo Rosado (2009, p. 1), o termo “biografia” é etimologicamente composto por “bio” (vida, do grego bíos) e “grafia” (escrever, do grego grápho). Portanto, biografia é a escrita ou descrição da vida de uma pessoa.

Conforme Rosado (2009), há diversas formas de biografia: a informativa (que se divide em biografia política e histórica), a crítica, a standard e a interpretativa, além da biografia de ficção. Este ensaio foca especificamente na biografia informativa, que inclui a biografia política e a histórica, ambas consideradas formas básicas do gênero. A biografia, como gênero literário, é complexa e abrange várias formas, incluindo a biografia histórica.

Outro aspecto importante é que, no mercado literário, o gênero biografia tem ocupado um lugar de destaque desde o final do século XX e início do século XXI (Schmidt, 1997 e 2003; Malatian, 2008). Quais são as possíveis condições para esse sucesso? Schmidt (1997) aponta algumas justificativas, como a perda de referenciais ideológicos e morais na sociedade, a busca por trajetórias individuais que sirvam de inspiração para o presente, a valorização da vida privada e a desconstrução de mitos, além do crescente interesse pelo gênero como uma tendência do conhecimento histórico, especialmente diante da crise do paradigma estruturalista. Para Charuer, conforme Schmidt (1997, p. 5), “os historiadores atuais buscaram restaurar o papel dos indivíduos na construção dos laços sociais”.

Avelar (2010) relaciona essa valorização do gênero biografia à recuperação da dimensão humana dos processos históricos, refletindo uma virada epistemológica em direção ao indivíduo. A biografia histórica deve, em certo grau, ser um relato que articula acontecimentos individuais e coletivos, pois uma biografia não événementielle não faz sentido. As pesquisas biográficas permitem redimensionar várias problemáticas concernentes à escrita da História e às relações sociais, ressaltando os atores sociais não como unidades coerentes, mas como um campo de conflitos e construção de projetos de vida.

Schmidt (2003, p. 60) observa que a biografia tem alcançado valor positivo ao estar inserida em uma sociedade liberal, que considera o indivíduo e suas ações como referências sociais positivas para o desenvolvimento da sociedade. Rodrigues (1978, p. 203) complementa que a narração histórica de vidas individuais, apesar de suas tradições clássicas, ganhou impulso com o advento da sociedade burguesa, essencialmente individualista. A biografia se tornou importante na difusão da mística do individualismo burguês, orientando-se para a descrição não apenas de vidas, mas de sociedades que se curvavam à onipotência de indivíduos geniais.

Contudo, a valorização da biografia histórica nem sempre foi assim. Schmidt (2003, p. 60) afirma que, no regime moderno de historicidade, a biografia foi exilada da historiografia. Malatian (2008) observa que o gênero é marcado pela desconfiança desde seus primórdios, com Tucídides e Políbio atribuindo condições tendenciosas a indivíduos ou causas. Essa insegurança em relação à verdade da narrativa é uma questão central para a ciência histórica. Ao longo do tempo, metodologias foram desenvolvidas para superar esse descrédito. Avelar (2010) observa que a escrita biográfica envolve uma narrativa de “movimentos encadeados e uma intriga codificada por fatos reais, interpretados” (Del Priore, 2009, p. 11).

Na busca pela verdade, Schmidt (1997, p. 8) destaca que a biografia histórica possui um tratamento diferenciado das fontes. Apesar das transformações teóricas e metodológicas, a historiografia permanece fiel à crítica dos documentos. Ele observa que, apesar do entrelaçamento interdisciplinar com a literatura, a biografia histórica se distingue pela crítica das fontes e pela construção do texto biográfico alinhada ao real, sendo este fator identitário da biografia na História. As pesquisas nessa área devem prestar contas ao "tribunal de apelação" da história: o passado e seus vestígios (Thompson, 1981, p. 74).

A relação entre a biografia histórica e a literatura é complexa e, em determinados períodos, observa-se uma tensão. Atualmente, há um consenso que distingue a biografia histórica da biografia literária, sendo que esta última tende a incluir mais conteúdo ficcional. Schmidt (1997, p. 12) afirma que os historiadores têm um compromisso mais rigoroso com sujeitos históricos concretos, que existiram na realidade. No entanto, ele não descarta a possibilidade de inferências, que devem ser claramente sinalizadas no texto biográfico por meio de modalizadores como "provavelmente", "talvez" e "pode-se presumir", conforme Ginzburg já observava.

Para exemplificar essa relação, cito dois trabalhos: a biografia "Lutero, um destino" de Lucien Febvre (1927) e o romance policial "A transparência do tempo" de Leonardo Padura (2018). Na parte final deste ensaio, apresentarei um relatório crítico sobre o trabalho de Febvre à luz das referências conceituais e metodológicas discutidas.

Outro aspecto crucial a ser considerado na biografia histórica é a relação entre o indivíduo e o contexto social. Essa questão é de significativa importância, pois o gênero biografia deve priorizar tanto as idiossincrasias quanto os aspectos do ambiente em que o sujeito se encontra. A biografia histórica transita entre o individual e o social, e o historiador-biógrafo deve considerar esses dois elementos à luz das fontes históricas disponíveis. Schmidt (2003) observa que, em vez de ser representativa, a biografia pode introduzir o elemento conflitual na explicação histórica, ilustrando, matizando e complexificando análises generalizantes que excluem as diferenças em nome das regularidades.

Por fim, a biografia histórica tem sido entendida como uma leitura do social, estabelecendo relações entre um indivíduo e o tempo sócio-histórico, articulando biografia e sociedade. Essa é a principal ênfase da atual releitura do gênero biografia, com diretrizes nas obras de Lejeune, Bourdieu e Le Goff (Malatian, 2008, p. 27).

 

CONCLUSÃO

Em conclusão, espero que a exposição acima tenha cumprido o propósito das minhas reflexões sobre os três elementos que compõem a biografia histórica: a biografia (gênero textual), o biografado (objeto da pesquisa) e o historiador-biógrafo (sujeito da pesquisa). O objetivo foi apresentar e refletir sobre as características conceituais e metodológicas desse gênero na ciência histórica.

Aproveito este espaço para transcrever meu relatório de leitura sobre a biografia "Martinho Lutero, um destino", de Lucien Febvre. Neste relatório, apresento informações, observações e críticas, com base nas características essenciais abordadas neste ensaio.

1. **Livro biográfico:** 

   - **Título:** Martinho Lutero, um destino 

   - **Ano da primeira publicação:** 1927 

   - **Ano da edição lida:** 2012 

   - **Tradução:** Dorothée de Bruchard 

   - **Número de páginas:** 359 

2. **Autor – Biógrafo:** 

   Lucien Febvre (1878-1956), francês, historiador e cofundador da Escola dos Annales.

3. **Biografado:** 

   Martinho Lutero – século XVI. 

   - Nasceu em 10 de novembro de 1483 e faleceu em 18 de fevereiro de 1546, na cidade de Eisleben, na Alemanha. 

   - Foi um monge agostiniano, mestre em Artes e doutor em Teologia, considerado uma das principais figuras da Reforma Protestante. 

   - Um dos ramos mais antigos do protestantismo recebeu seu nome: luteranismo. No Brasil, há duas igrejas de ramo luterano: 

     - IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (origem alemã, de imigração) 

     - IELB – Igreja Evangélica Luterana do Brasil (origem americana, de missão) 

4. **A estrutura do livro:** 

   - É dividido em três partes: "O Esforço Solitário", "A Maturidade" e "Retraimento em Si". O autor sugere um olhar sobre o biografado em movimento: início, ápice e declínio. 

   - A biografia não abrange toda a vida do biografado; o autor delimita a narrativa desde as origens familiares até o ano de 1525, embora Lutero tenha vivido até 1546. 

   - A primeira parte apresenta Lutero como um indivíduo solitário, com origens familiares difíceis e uma vida monástica marcada por buscas espirituais e angústias existenciais. 

   - A segunda parte mostra Lutero amadurecendo, imerso em uma Alemanha próspera, mas dividida política e socialmente, e em uma Igreja Católica repleta de contradições morais. 

   - A terceira parte retrata um Lutero retraído, exaurido e em conflito, apontando para possíveis destinos distintos, sempre conforme a ótica de quem observa o biografado. 

   - O livro inclui citações, referências bibliográficas e notas sobre as fontes consultadas pelo autor.

5. **Críticas e considerações sobre o livro e o trabalho do historiador como biógrafo:** 

   1. O gênero biográfico é histórico. O autor apresenta suas fontes e faz uma revisão da história da arte sobre as publicações relacionadas à vida do biografado, destacando sua importância na pesquisa sobre essa personalidade e na história da religião. 

   2. Embora não seja a primeira obra sobre Lutero, cumpre um papel importante no século XX, desmitificando a ideia de que sua vida foi linear, monolítica e previsível, revelando um homem de vitalidade singular e múltiplas incertezas. 

   3. A relação entre aspectos individuais e coletivos é preservada e dialoga de forma fluida, mesmo diante de contradições. 

   4. O biógrafo é fiel à tradição epistemológica e metodológica da Escola dos Annales, utilizando o referencial da história-problema, instigando o leitor sobre o biografado. 

   5. Na perspectiva da história-problema, o autor apresenta, a partir das fontes, aspectos e faces distintas do biografado que contrariam idealizações consagradas. 

   6. O autor utiliza uma narrativa que explicita seu entendimento à luz das fontes, com inferências e conjecturas sinalizadas por modalizadores como "possivelmente", "pode ser que" e "existe uma possibilidade plausível". 

   7. A relação entre o biografado e seu tempo é abordada de forma adequada, ressaltando as influências mútuas. 

   8. O trabalho biográfico revela que Lutero não nasceu para ser reformador da Igreja; sua preocupação estava voltada para sua própria salvação e vida interior, não para a reforma institucional. 

   9. O título "Martinho Lutero, um destino" expressa o trabalho do autor, pois o biografado segue caminhos que se constroem sob suas condições sociais, políticas, econômicas, religiosas e psicológicas.

 

REFERÊNCIAS

 

AVELAR, A. de S. A biografia como escrita da História: possibilidades, limites e tensões. Universidade Federal de Uberlândia, março de 2010. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/index.php/dimensoes/article/view/2528

BERTONHA, João Fábio. Plínio Salgado: biografia política. São Paulo: Edusp, 2018.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006, p. 183-191. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1185/mod_resource/content/1/Bourdieu%20-%20A%20Ilus%C3%A3o%20Bibliogr%C3%A1fica.pdf

FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três Estrelas, 2012. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/313776903_FEBVRE_Lucien_Martinho_Lutero_um_destino_Traducao_de_Dorothee_Bruchard_Sao_Paulo_Tres_Estrelas_2012

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003, p. 141-184.

MALATIAN, T. M. A biografia e a História. Cadernos-CEDEM, UNESP/Franca, v. 1, n. 1 (2008). Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/cedem/article/view/518

ROSADA, S. Biografia. In: E-Dicionário de Termos Literários, 2009. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/biografia/

SCHIMDT, B. B. Construindo biografias... Historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos. Estudos Históricos, 1997. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2040/1179

________. Biografia e regimes de historicidade. MÉTIS: História & Cultura, v. 2, n. 3, p. 57-72, jan./jun. 2003. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/1041/707

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