Biografia histórica: alguns apontamentos teóricos e metodológicos

 


Dr. Rubem A. Mariano*
Psicólogo - CRP 08/14994
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*Doutor em Historia Política pela Universidade Estadual de Maringá e Cientista da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.

 “A biografia é o lugar por excelência da pintura da condição humana em sua diversidade, se não isolar o homem ou não exaltá-lo às custas de seus dessemelhantes”

 Levillain, 2006.

 Introdução

Este texto resulta de leituras e discussões realizadas na disciplina de Teorias e Metodologias da História Política, ministrada pelos professores Dr. Fabio Bertonha e Dr. Ângelo Priori. A ementa da disciplina abrange o estudo da historiografia sobre a história política, com foco em suas diferentes abordagens teóricas e metodológicas.

O objetivo deste conteúdo é apresentar alguns apontamentos conceituais e metodológicos pertinentes ao gênero “biografia histórica” na área política, conforme discutido pelo Prof. Dr. Fabio Bertonha. É importante ressaltar que essa disciplina é obrigatória no curso.

Os referenciais teóricos deste texto incluem alguns dos textos estudados na disciplina, como “A Política” de Jacques Julliard, “A Ilusão Biográfica” de Pierre Bourdieu, “Os Protagonistas: da Biografia” de Philippe Levillain e “Plínio Salgado: Biografia Política” de Fabio Bertonha.

Desenvolvimento

O primeiro apontamento que faço é a importância dos saberes sobre teorias e metodologias da História Política, que são fundamentais na formação do especialista em História. Sem esses conhecimentos, o historiador fica vulnerável a elaborações teóricas e metodológicas inadequadas, além de modismos e equívocos que comprometem a pesquisa científica. Segundo Bentivoglio e Merlo (2014, p. 8), a teoria da história abrange um conjunto de estudos que incluem: - A própria teoria, também chamada de epistemologia; - A metodologia, referente aos métodos usados na pesquisa histórica; - A filosofia da história, que discute o sentido da história e suas complexas relações com a memória; - A narrativa, ou escrita da história; - A historiografia, ou a história da história e A cultura histórica, uma área recentemente defendida por alguns estudiosos.

Nesse sentido, a História Política contemporânea desenvolve teorias e metodologias de forma interdisciplinar, incorporando conhecimentos da economia, sociologia, antropologia, ciências sociais, estatística e linguística, entre outros. Esses conhecimentos ajudam a expressar a dimensão política e contribuem para revelar os conteúdos teóricos e metodológicos necessários para a prática da História Política hoje (JULLIARD, 1976).

Em segundo lugar, ressalto que, assim como o tema do poder relacionado às grandes instituições, a biografia também recebeu a atenção crítica das novas epistemologias na História Política a partir da década de 70 (LEVILLAIN, 2003). Entre as décadas de 50 e 60, o tema da biografia foi desvalorizado e relegado ao esquecimento acadêmico, especialmente na França. Le Goff e Nora (LEVILLAIN, 2003) atribuem essa realidade à insuficiência metodológica da biografia. Contudo, entre o final da década de 70 e o início da década de 80, houve um renascimento do interesse pela biografia, impulsionado por métodos da história social e das ciências da linguagem, resultantes das novas concepções epistemológicas da história total e da produção intelectual da École des Annales na França, que também influenciaram a historiografia brasileira.

Um exemplo recente do trabalho do historiador nesse contexto teórico e metodológico é a tese de pós-doutorado de Bertonha (2018), que resultou em seu livro sobre a biografia de Plínio Salgado. Ele aborda o tema da biografia sob uma perspectiva histórica, reconhecendo a complexidade desse tratamento. O historiador deve ser visto como um arqueólogo, comprometido em produzir explicações sobre as mudanças históricas e, mais especificamente, sobre o gênero biografia, à luz das exigências teóricas e científicas da História Política.

Bertonha (2018, p.14) afirma, na introdução de seu livro: “Uma biografia histórica só tem valor quando transcende o caráter anedótico e superficial, sendo capaz de mostrar a significação histórica de uma trajetória de vida.” Esse é um dos principais pontos que serão abordados neste texto.

Assim, a partir dessas considerações, podemos fazer um terceiro apontamento: do ponto de vista teórico e metodológico, o historiador deve exercer seu ofício como um verdadeiro arqueólogo. Isso implica analisar os contextos em que a pessoa biografada se insere e produzir explicações a partir de fontes rigorosamente tratadas, que revelem a figura do biografado como uma expressão de seu tempo, ao mesmo tempo em que ele marca seu tempo com suas próprias ideias.

Antes de aprofundar ainda mais, surgem as seguintes questões que servirão de orientação para a produção deste texto, especialmente para iniciantes nos estudos de História Política: O gênero biografia pode ser um objeto de pesquisa científica da História? Quais elementos, a partir da literatura especializada, caracterizam o gênero biografia como uma biografia histórica? Quais procedimentos teóricos e metodológicos devem ser observados para realizar a pesquisa científica nesse campo?

Antes de apresentar respostas objetivas a essas perguntas, é importante ressaltar dois aspectos que justificam os questionamentos mencionados:

Primeiro, ao considerar a história tradicional sobre o gênero biografia, observa-se uma visão factual, descontextualizada e repleta de elogios à figura do biografado, que o credencia como resultado de sua condição psicológica e moral, sem diálogo com o contexto em que viveu. Nesse caso, a realização de qualquer empreendimento científico sobre biografia se torna sem sentido.

O segundo aspecto refere-se às observações de Bourdieu (2006) sobre a “ilusão biográfica”, alertando para o aspecto ilusório construído pelo investigador em relação ao biografado. Os intentos do mercado literário muitas vezes valorizam uma determinada virtude do biografado, influenciando a construção de uma personagem "vendável", que pode atender a necessidades mercadológicas, mas que não reflete as realidades históricas do biografado.

Este texto não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas visa alinhar alguns apontamentos teóricos e metodológicos.

A resposta à pergunta sobre o gênero biografia como objeto de pesquisa científica da História é, sem dúvida, afirmativa. Nas palavras de Levillain (2006, p. 174): “ela pode ser probatória.” A questão, no entanto, reside mais no objetivo do que no objeto da História. O foco no objetivo ressalta a compreensão epistemológica da História em relação ao objeto “biografia”, uma vez que o caráter científico credencia qualquer objeto ao patamar da verdade. Atualmente, o gênero biografia não é visto como capaz de abranger a totalidade do “eu” da personagem biografada.

Nesse sentido, são pertinentes as observações de Levillain (2003) e Bourdieu (2006) sobre o gênero biografia:

Bourdieu argumenta que não existe a mínima possibilidade de fazer biografia devido à complexidade do objeto (o ser humano e suas relações sociais), o que torna o gênero um empreendimento ilusório. Ele critica a visão linear e romanesca da vida humana, que busca fornecer uma compreensão padronizada do biografado.

Levillain, por sua vez, afirma que a questão não está no objeto “biografia”, mas na finalidade do fazer história, ressaltando a importância da teoria e metodologia do conhecimento científico. A biografia histórica não deve tentar esgotar a compreensão do "eu" do biografado. No entanto, para os intentos científicos da História, é possível construir entendimentos e significados da figura do biografado a partir de provas históricas, sem a pretensão de apresentar uma única interpretação.

Nesse contexto, Levillain (2006) menciona o trabalho de Saul Friedlander como um exemplo de biografia histórica, destacando sua capacidade de mostrar as ligações entre passado e presente, memória e projeto, indivíduo e sociedade.

Bertonha (2018) concorda com Levillain e Bourdieu ao afirmar que, enquanto instrumento de reconstrução da História, a biografia deve mostrar a relação de identidade que um indivíduo estabelece com seu meio social ao longo do tempo (BERTONHA, 2018, p.17).

Os elementos que podem caracterizar o gênero biografia como uma biografia histórica e os procedimentos teóricos e metodológicos adequados estão, em parte, nas considerações acima. Bertonha (2018, p.17) ressalta a necessidade de um olhar atento e cuidadoso em relação às fontes, que deve indicar coerência e lógica, sem desconsiderar improvisos, circunstâncias inesperadas e reelaborações do passado e do presente.

Por fim, a título de exemplo prático da aplicação das teorias e metodologias sobre biografia histórica, apresento os objetivos do livro de Bertonha (2018) sobre Plínio Salgado: biografia política:

1. Ressaltar a relação entre o homem e o político Plínio Salgado e o mundo em que viveu, e como essa interação afetou esse mundo;

2. Compreender uma questão maior - a direita radical e as direitas em geral no Brasil do século XX - através do estudo de sua vida política;

3. Recuperar, por meio da figura do biografado, elementos sobre os diferentes momentos do pensamento e da prática política da direita brasileira nesse século e os vínculos entre esses momentos.

 

Considerações Finais

Como considerações finais, apresento algumas reflexões sobre a prática da ciência histórica ao trabalhar com o gênero biografia histórica:

1.      A importância dos saberes sobre teorias e metodologias da História Política para a formação do especialista em História, como a Cultura Política e a própria Biografia;

2.      A História Política contemporânea se caracteriza por sua abordagem interdisciplinar, sem perder o viés científico, utilizando fontes como provas rigorosamente analisadas;

3.      O gênero biografia é um objeto de pesquisa da História como ciência, pois “ele pode ser probatório”, segundo Levillain;

4.      Atualmente, o gênero biografia não é visto como capaz de abranger a totalidade do “eu” da personagem biografada, no sentido positivista;

5.      É fundamental considerar as observações de Levillain (2003) e Bourdieu (2006) sobre o gênero biografia: Bourdieu alerta para a construção de um empreendimento ilusório, descolado da realidade do ser humano, enquanto Levillain destaca a necessidade de cuidado na biografia histórica, que não deve tentar esgotar a compreensão do "eu" do biografado;

6.      A partir de Levillain (2003) e Bertonha (2018), é possível construir entendimentos e significados do biografado a partir de fontes históricas, sem buscar um único sentido ou esgotar todas as interpretações, mas utilizando fatos e gestos recolhidos criticamente para representar a história coletiva através de um indivíduo e sua relação com seu contexto;

7.      Por fim, em relação aos procedimentos metodológicos adequados, deve haver um olhar atento e cuidadoso com as fontes, que indique coerência e lógica, sem desconsiderar improvisos, circunstâncias inesperadas e reelaborações do passado e do presente.

 Doutor em História Política pela Universidade Estadual de Maringá – UEM

Referências

BERTONHA, João Fábio. Plínio Salgado: biografia política. São Paulo: Edusp, 2018.

BENTIVOGLIO, J. C. e MERLO, P. Teoria e metodologia da história: fundamentos do conhecimento histórico e da historiografia. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Secretaria de Ensino à Distância, 2014.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro; Ed. FGV, 2006, p. 183-191.

JULLIARD, Jacques. A política. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 180-196.

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª. Ed. Rio de Janeiro. Ed. FGV, 2003, p. 141-184.


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